Numa grande cidade viveram, há alguns anos, Moisés, Salomão e Daniel. Suas histórias estão registradas na memória coletiva de seus descendentes. E também nos subterrâneos, nas galerias de esgotos, nas catacumbas, no submundo em que viviam e onde vivem seus filhos e netos.
Naquele tempo (talvez também hoje), depois das correrias, das estripulias, das aventuras noturnas, alguns ratos de reuniam em pequenas assembléias. Às vezes apenas trocavam idéias, narravam fatos, riam ou choravam. A maioria, no entanto, quando não ia dormir, preferia continuar correndo atrás de alimentos e diversões. “Não vale a pena perder tempo em reuniões. A vida é muito curta, embora às vezes seja também muito divertida. Vamos à luta e à farra.”
Pouco a pouco as pequenas reuniões se transformaram em grandes assembléias. E então apareceram os primeiros chefes e, logo, as primeiras brigas internas. Uma noite, Moisés subiu a um palanque e apresentou uma proposta radical: precisavam implodir a cidade. O mundo deveria vir ao chão. Tudo demolido: prédios, igrejas, fábricas, escolas, quartéis, casas. Recebeu vaias e aplausos. E aproveitou a ocasião para apresentar ao público o nome do grupo que comandava. Não ainda um partido, porém já pronto para grandes batalhas. “Somos os Ratos Mosaicos”. Partidários de outro líder gargalharam e os chamaram de ultrapassados, inimigos da civilização humana. Moisés não se abateu: Não deviam ter medo de nada, de ninguém. Afinal, eram apenas ratos, viviam nos subterrâneos, sem direitos sociais, civis ou políticos. Precisavam derrotar os homens. Nada de esperar pelas grandes pragas prometidas. Elas poderiam matar dois coelhos com uma só paulada: os homens e os ratos.
Salomão pediu a palavra: a implosão significaria a morte de todos os seres, sobretudo dos ratos. Os edifícios viriam abaixo e soterrariam exatamente as redes de esgotos, os subterrâneos. Melhor viverem como viviam, mesmo na miséria, na mais absoluta miséria. E se declarou inimigo dos ideais mosaicos. Nada de implosões, de explosivos. Poderiam solapar a sociedade humana, sim, porém pelo envenenamento das águas. O morticínio seria tão abrangente, tão avassalador, tão repentino que as autoridades nada poderiam fazer. E eles, ratos, tomariam conta da cidade, do mundo. Os próprios gatos morreriam, juntamente com seus donos, seus senhores - os humanos. Eles, ratos, eram livres, não tinham donos. E assim seriam para sempre, porém sem a presença nefasta de gatos e homens.
Salomão discursava com veemência e sempre cheio de filosofias: “Os loucos desprezam a sabedoria e o ensino”; “não tenham inveja dos homens, que são violentos, nem sigam nenhum de seus caminhos”; “morrendo o homem, morre a sua esperança”. E terminava seus discursos com um grito: “Por um mundo novo e salomônico!”
Outra facção - a dos Ratos da Babilônia - apresentou proposta tão revolucionária quanto as duas primeiras. Chefiada por Daniel, pretendia o aniquilamento da raça humana por outra via: o agigantamento dos ratos. Ora, agigantando-se os ratos, não haveria homem capaz de enfrentá-los. Como se daria esse processo de crescimento físico de cada indivíduo rato? Os homens haviam inventado substâncias químicas que vinham provocando o agigantamento dos novos seres humanos. O mesmo deveriam fazer os ratos. Em poucos anos, as gerações de ratos já nasceriam do tamanho de pequenos leões. Na idade adulta, qualquer rato poderia enfrentar um leão adulto. E as presas? Ora, com a superpopulação de ratos gigantes, ferozes e imunes a venenos, seria fácil tomar conta do mundo. Todos os gatos seriam eliminados. E também as serpentes e outros inimigos naturais dos ratos. Os homens, inclusive.
Finalmente apresentou-se Nabucodonosor, dizendo-se rei. Todos se prostraram diante dele, até mesmo os chefes dos grupos. “Tive um sonho; e para sabê-lo está perturbado o meu espírito.” Os ratos ergueram as cabeças e gritaram: “Ó rei, vive eternamente e dize o sonho a teus servos; nossos sábios darão a interpretação de teu sonho.” Nabucodonosor se irritou: “Se não me fizerdes saber o sonho e a sua interpretação, sereis todos despedaçados.” Alguns olhares se voltaram para Daniel. “Ele é sábio e lembrará ao rei o sonho esquecido.” Outros se voltaram para Moisés: “Ele falou com o Senhor, foi mediador entre Ele e os ratos, copiou os dez artigos da lei principal - lembrará ao rei o sonho esquecido.” Houve ainda quem se lembrasse de Salomão: “Ele é sábio e também poeta - lembrará ao rei o sonho esquecido.”
Nesse momento a catacumba ruiu. Morticínio catastrófico. Porém alguns ratos conseguiram a salvação.
(12/9/98)/////