(Abel e Caim, de Gustav Doré)
O pai de Caim e Abel não se cansava de elogiar o segundo. A mãe se irritava e saía em defesa do outro, como se elogios a um significassem censuras ao primeiro. Quando meninos viviam se atracando. Esmurravam-se por qualquer motivo. Chutavam-se feito cavalos. Sujavam-se nos lamaçais. O pai os punia severamente, mais a Caim. Dava-lhe surras demoradas. A mãe socorria o pobre filho. Nas brincadeiras e nos jogos, todos os gabos do pai iam para Abel. Cresceram como inimigos. Se Abel pretendia uma mocinha, Caim corria em busca dela, a falar mal do irmão. Se Caim se aproximava de uma jovem, Abel não sossegava enquanto não a fazia se afastar do outro. O pai sorria: o filho Abel se parecia muito com ele, até nas conquistas amorosas. A mãe ouvia aquilo irritada: Caim sabia cativar as mulheres.
De tanto se sentir ofendido, Abel passou a planejar vingança. Talvez afogamento no rio. O corpo de Caim apareceria inchado, roído pelos peixes. E se o atraísse para o alto do morro e o empurrasse? Noites e noites acordado, a sonhar o fim do irmão. Caim vivia então em constantes passeios noturnos. Possivelmente enrabichado por alguma dama. Saía de casa ao anoitecer e só regressava alta noite, às vezes de madrugada. Abel seguiu-lhe os passos, sorrateiro. Viu-o voltar sempre pelo mesmo caminho. Adquiriu uma arma de fogo. Daria o primeiro tiro nas costas. Caído o irmão, atiraria mais cinco vezes na cabeça, na nuca, nos pulmões, no meio da espinha. Fez tocaia durante várias noites. Caim parecia compreender o perigo, corria e chegava salvo à casa. Abel não conseguia disparar o primeiro tiro. Respiração quase a parar, as mãos tremiam, os olhos se enchiam de poeira. Mas finalmente viu o irmão se aproximar, todo contente, a assobiar modinhas. Detrás de uma árvore, Abel apertou o gatilho. A bala passou perto da cabeça. Caim correu e se meteu no mato. Abel se pôs a imaginar o que fazer. Iria atrás do irmão ou deixaria tudo para outra noite? Sentou-se. Talvez a bala tivesse atingido o desgraçado. Súbito um vulto apareceu, silencioso, lento. Nada Abel viu ou ouviu. Sentiu apenas uma pancada na cabeça. E tombou, o sangue a jorrar.
Fortaleza, 31/10/2004.