Na semi-escuridão sentiu medo. Bichos venenosos se esconderiam nas fendas da gruta. Permaneceu imóvel, olhos bem abertos, quase paralisado. Sentiria a picada mortal e mal teria tempo de chegar a campo aberto. Logo seria devorado por cobras e lagartos. E depois – se tivesse sorte – curiosos como ele descobririam sua ossada. Algum pesquisador diria tratar-se de restos de indivíduo da tribo dos paiacus, dos jenipapos, dos canindés, dos quixelôs... Paleontólogos falariam em homem pré-histórico. Até que exames mais apurados revelariam a verdade – o esqueleto pertencera a um cidadão de Palma, até meio claro, com algum sangue português nas veias, e recentemente falecido. Um maluco que andara à procura de índios e cavernas, a vagar pela Serra.
No meio do mato avistaram aquele homem e sua distração, figura torta, sem simetria, no ir e vir das horas. Um homem parado feito marmota, como se ali o tivessem posto para espantar os passarinhos que chegavam aos bandos e pios, na algazarra dos cios, voavam, faziam piruetas e fugiam, ao pressentirem vida nos olhos de gente daquele boneco.
Decerto daquelas bandas não era, nem de perto. De que terra então teria vindo? De bem longe, das distâncias, das alturas, das funduras? Cruz-credo!
Não trazia, porém, feições de tentador, antes de quem não se acostumou a ver bicho e pasmado se fica.
Teria nascido das águas ruidosas e apressadas do Choró ou os ventos do mar o haviam remado contra a correnteza? Mas não mostrava jeitos de peixe, antes de seixo.
Teria sido simples pedra tosca feita humana imagem baça ao longo de tantos ventos? Ou teria surgido das folhas das árvores, nos tormentos da agonia, à moda de borboletas, essas voantes margaridas? Larva invisível, teria saltado do ovo primitivo, feito um fantasma, e adquirido forma de asquerosa lagarta peçonhenta? E depois de crisálida, para diurnamente e descorada adejar no meio da folharia, pronta a imitar a vida que ao seu redor pulava? Mas não semelhava bicho, antes pau. Seria então carnaúba desfolhada pelo mal de tantos ventos?
De costas para o litoral, o homem olhava e mirava o sertão. E os braços estendia – um querendo beber o rio e sua correnteza, outro tocando a verdura do mato e sua ingremidez.
Aquele homem-marmota parecia querer desvendar o mistério dos limites de um velho país chamado Curiancó. A terra dos sonhos de dois lusitanos que imaginaram estender braços e pernas, feito raízes eternas, fazê-los crescer e abarcar a selva dos jenipapos. E tornarem-se gigantes, novos atlantes – uma bota no meio do rio, outra no pico da serra. Imensa sesmaria que mais tarde pudesse competir em largura com o Paiz do Jaguaribe.
Homem ou marmota, nunca ali nem noutra era aquele estranho se achara. Jamais os braços estendera com tanta liberdade, nem os olhos alongara por tanto tempo na direção de tamanhos horizontes, quer nos idos dos jaguares, quer na idade dos mastodontes. Nunca as oiças afrouxara para tão chorosas águas, nem o peito estufara para tão insanos ventos, nem em tão formoso leito os pés deitara.
Aquele espantalho não usava chapéu de palha nem roupa remendada. Apenas espantava gente. Seria por acaso alma penada de morto de tocaia, coitado capinador transformado em desafeto de coronel?
Medrosa, aquela gente crédula não lhe deu bom-dia, nem lhe fez pergunta alguma. Os mortos que vivam em paz, no compasso das ave-marias.
E ele desapareceu, assim, sem deixar rastro. Teria sumido no oco da serra, se metido no seio da terra, fugido de pássaros e ventos, de bichos e gentes?
Talvez se tratasse de cidadão areado que não mais encontrava o caminho de volta, perdido entre a visão e a loucura.
Viram-no em todas as partes, visível e invisível, detrás de árvores, nos altos dos picos, no meio dos rios, só, sempre só, venerado por bichos, à distância, de perto.
Viram-no com o pé na estrada, retirante que parte sem nada. No Pico Alto, pequenino ponto entre o sol e a terra, perdido animalzinho nas cumeeiras do mundo, inesquecível vagabundo.
Nas cercanias da ladeira de Itapaí, braços estendidos, como a querer parar o trem da morte.
Por último foi visto na Tijuca, mãos a escavacar a terra, à cata de possíveis vestígios de índios. Tinha, então, feições de bicho da lama, estátua de barro a locomover-se ao léu, nu feito um selvagem, coberto de ramaria. Pura assombração.
Aquele homem, desde pequeno, na sonolência dos crepúsculos, no correr dos dias bisonhos, escancarava a janela dos anseios e se via a saltar grotas e abismos. Fugia de seus semelhantes, de si mesmo, olhos nunca fartos. Num pulo mágico, num salto trágico, voava de casa para o alto da Serra. A solidão a abrir-lhe caminho para os desregramentos da carne e a insânia da arte.
Nos invernos, a névoa tomava conta do verde, como se o céu descesse. Obnubilava-se tudo – sonho e realidade. E o menino virava poeta. As nuvens caíam feito setas, e até sua tristeza se enchia de frio.
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