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segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Poisson au poison (Anderson Braga Horta)



Dois potezinhos, um amarelo e outro azul. Num deles estava a morte. Um único engano e ele faria, inapelavelmente, sua última viagem.

Entressorria, no ônibus, pensando em como lhe daria a boa nova. Diria tudo de repente? aos poucos? Ora, podia combinar os dois modos. O choque seria a antecipação inesperada de seu regresso. A outra surpresa, bem mais agradável, poderia ser primeiro insinuada, e, depois, destilada lentamente.
Estirou-se na poltrona e, cismarento, descansou a cabeça nas mãos cruzadas atrás. Enfim, um pouco de sossego! A estabilidade, após tantos anos de viagens e viagens, canseira e desconforto. Não mais noites indormidas em sórdidos hotéis; não mais apertos, poeira e solavancos de todas as conduções do interior; não mais o terno barato, o sapato furado, — não mais essa miséria de vida. Doravante, de segunda a sábado, esperá-lo-ia às tardes o calor aconchegante do lar... Domingos nunca mais dissipados em bares e prostíbulos...
— "Doce lar!"— sorriu, amargo, de olhos quase fechando.
Antegozava o sabor da surpresa.
— "Um modelo de esposa. Ela merece isto."
Sorria.

***

Ela esforçava-se por demonstrar alegria.
— "Uma incerta" — pensava. "E o cretino espera que eu me derreta em sorrisos."
Sorriu, efetivamente. E, beijando-o nos lábios, com ódio, murmurou:
— Que bom você ter voltado mais cedo.
Lembrava-se que teria de telefonar, discretamente, desmarcando .tudo. Inventaria uma desculpa e telefonaria nas barbas do marido, que não manifestava a menor intenção de afastar-se. Estava certa de que ele a olharia daquele jeito estranho, meio de lado, como de propósito para envenenar-lhe a alma. Desconfiaria? Saberia já de tudo? Ora, não, por Deus! Ele sempre tão bom, tão estúpido...
— Alô! é D. Rosinha? Olhe, não posso provar o vestido hoje. Meu marido acaba de chegar de viagem... Logo que puder, telefono. Certo? Um abraço...
Bem, pelo menos ele nem a fitara. Parecia preocupadíssimo em bebericar aquela maldita batida de limão. Deus! aparecesse meia hora mais tarde!...
— Sabe, querida? — disse, afinal. — Tantos anos de casados, e nunca tivemos verdadeiramente um lar...
Sabressaltou-se. Que quereria significar com essas palavras?
— Não temos tido um lar, é isto — repetiu ele. — Eu sempre fora, e nem ao menos uma criança para alegrar a casa e lhe fazer companhia.
— Ora, você sabe muito bem que eu nunca desejei ter filhos.
— Não a estou culpando. Mas... Bem, você compreende...
— Não, Roberto. Francamente, não compreendo
— Querida! Não se amofine sem razão. Estou apenas tentando lhe dar uma bela notícia. De hoje em diante tudo mudará para nós. Começaremos de novo.
— Não me diga que você pretende mudar-se outra vez. Eu...
— Não, não é o que você pensa. Vou me mudar, sim, mas para cá.
— Não estou entendendo.
— Fui promovido, querida. Acabaram-se as viagens. Serviço burocrático, só. As cadeiras estofadas, o ar refrigerado do escritório... Não saio mais de Brasília. É quase uma aposentadoria! A partir deste momento, sou todo seu, todos os dias...
A mulher reteve a respiração. Crispou-se-lhe a face, quase traindo a sua decepção, o seu ódio. Mas da garganta lhe saltou, felino, um gritinho histérico:
— Oh! que bom! que bom, meu amor!

***

— "Preciso matá-lo" — pensou.
Guardava habitualmente açúcar num pote azul e veneno ("para matar rato", se ele descobrisse) num amarelo. Por muito tempo esperara que o marido se envenenasse acidentalmente. Mas o diabo do homem tinha boa cabeça. Guardara a fórmula "pote azul = açúcar" e nunca se equivocava. Também jamais se preocupou em perguntar o que havia no pote amarelo:
Até então, ela tivera escrúpulo — ou receio — de agir diretamente. Agora, teria de precipitar a coisa.
— "Cretino!" — gritava intimamente. — "Com certeza pensa que estou disposta a acabar meus dias apodrecendo a seu lado!"
Acendeu as lâmpadas, pensativa.
— Amor — ciciou. — Amanhã cedo, enquanto você descansa, vou ao mercado. Quero preparar um almoço especial para você...

***

Manhã. Diante dos dois potezinhos, ele sorria, olhando ora um, ora outro.
— "Azul e amare]o. Belas cores. O amarelo ou o azul? Que confusão, Senhor! Em qual deles?"
A testa interrogativamente franzida, comprazia-se nesse jogo irônico, solitário. Sentia-se novamente criança, a fazer caretas diante do espelho. Qual a mais terrível?
— "Um modelo de esposa... Ah! Imaginava então que eu não descobriria? E me supunha capaz de cair em tão ingênua ratoeira... Não faz mal. Tudo se encaminha como eu pensava.. O caçador cairá na própria armadilha."

***

— “Filé de peixe ao molho de camarão. Seu prato favorito. E não haverá estranheza por eu não comer: ele sabe que não suporto peixe. Além do mais, estou terrivelmente indisposta..."
Ao temperá-lo, bem picante (ele gostava, e a pimenta distrairia .o paladar de algum sabor porventura estranho), ouvia-o já dizer, como de hábito quando elogiava qualquer coisa sua:
— Cláudia, este peixe está diabólico!
— "Diabólico!" — sorriu ela, pegando um dos potezinhos. Uma boa dose de arsênico e ficaria um bocado próprio o adjetivo. — "Ah! querido, ainda lhe resta fazer uma viagem. Uma só..."

***

Ele comeu o peixe sem demonstrar estranheza, apesar do sabor diferente. ("Não vamos contrariá-la antes do café..."). E não esqueceu o elogio habitual:
Cláudia sorriu docemente.
— Não quer o café, querido? — perguntou, enquanto atirava na xícara umas colherinhas do pote azul.
— Não, tome-o você. Não agüento mais nada.
— Também não quero. Estou terrivelmente indisposta...
Ele encarou-a, surpreso. Não, não havia desconfiança em sua fisionomia. Todos os gestos da mulher exalavam serenidade e doçura. Deu de ombros — afinal, não havia pressa — e foi fazer a sesta. Pouco depois, começou a sentir-se mal.
Levantou-se, indeciso. Olhou mais demoradamente a esposa; desconfiado...
— "Será...?"
Mas nada parecia ter-se alterado, a mesma impressão de segurança e meiguice vinha de toda ela.
— Que foi, amor?
— Acho que não estou muito bom, sabe? Estou...
— Não se preocupe, filhinho. Deve ser o seu grande simpático novamente.
— O grande antipático! — pôde gracejar.

***

Enfim, não era mesmo para se preocupar. Não houvera sobremesa, recusara o café. Nada a temer, portanto. E os sintomas eram os que sentia tão freqüentemente. Tomou as últimas duas drágeas de um calmante e observou que precisava pedir nova receita ao doutor. Deitou-se e morreu.

***

Já estabelecida como causa mortis uma intoxicação, o comissário deitou olhares suspicazes à viúva, ouvindo-a, interrogada, falar no que fôra o almoço.
— "Então"— monologava — "ela abomina peixe e, apesar disso, não prepara nada diferente para si?"
Podia não ser nada, poderia ter havido mesmo a alegada indisposição. Mas era uma suspeita razoável. Uma vizinha menos discreta insinuara possíveis infidelidades, a firma em que trabalhava o morto dera prontamente todas as informações sobre sua vida funcional. E, como, para o comissário, um policial que se preza devia ter um mínimo de fantasia, pôs-se ele a armar as peças de um provável quebra-cabeça — por sinal, dos mais simples: uma esposa infiel, um marido viajante, a súbita notícia de sua transferência para setor sedentário... Se se tratasse realmente de crime, já estava elucidado.
Voltou a interrogar a viúva.
— Não! joguei tudo fora! — começou ela, visivelmente transtornada.
Mas era tarde: o policial abria a geladeira e retirava as sobras do almoço.
Só então percebeu, aterrorizada, o erro de não ter mesmo dado sumiço no prato. Como pudera ser tão estúpida!
Já não conseguia esconder o nervosismo.
— "Não há dúvida" — disse para si o comissário. — "Que primarismo!"
E à viúva, mordaz:
— Não se preocupe, madame, isto não quer dizer nada. Faz parte da rotina...

***

No dia seguinte, quando tocaram a campainha, Cláudia ainda estava acamada. A expectativa dessa hora quase a enlouquecia. Nada teria comido se as moças.do apartamento de cima não lhe houvessem levado um pequeno lanche de chá e biscoitos. Gostaria de ter tido forças para interromper a espera: o pote amarelo, seria suficiente adicionar umas colheradas ao chá, mesmo perante as vizinhas. Ninguém perceberia. Mas não o pudera. Só lhe restava enfrentar o sarcástico sorriso que certamente depararia ao abrir a porta.
O que encontrou, contudo, foi um sorriso encabulado:
— Boa tarde, minha senhora. Lamento incomodá-la ainda, mas asseguro que é pela última vez.
A resposta veio trêmula:
— Esteja à vontade. Desculpe-me por um minuto só, vou preparar um calmante e volto em seguida.
Foi à cozinha, entornou quase meio vidro de Passiflorine num copo e, diante dos dois potezinhos, hesitou. Deteve~se longamente ante o amarelo, fitando-o desesperada:
— "Neste pote está a minha salvação. Basta um pouquinho. Tudo será rápido..."
Entretanto, com um suspiro de desânimo — "Não, não tenho coragem" — recuou, optando pelo azul. Derramou grande porção sobre o líqüido, mecanicamente, e voltou à sala mexendo o remédio com uma colher.
— Como eu ia dizendo, madame, fizemos a análise e...
— E encontraram o veneno!
— Veneno? Não compreendo. Claro que não! Oh! lamento que a senhora se ofendesse com o nosso procedimento. Nós...
Cláudia estacou, incrédula. Mal ouviu as explicações do policial. Balbuciou qualquer coisa confusa e afinal sorriu palidamente, sob uma onda de alívio. Tomou de um só gole o conteúdo do copo.
— O camarão é que estava estragado — continuava o comissário. Não se pode confiar em camarão, principalmente quando vem de tão longe... Mas palavra, dona — concluiu, sob o olhar aterrorizado da viúva —, palavra que nunca ouvi falar de molho igual ao seu: estava que era puro açúcar!...

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