CALVÁRIO
- I -
Navegava a lua para as bandas do Candeia, feito cabaça na correnteza, passavam por ela tufos de nuvens, latiam cachorros no mundo. E Zé Carroceiro escorregava pelos becos, tochas acesas, garras afiadas, sem um miado na goela seca.
Dormia o boi no curral, exposto ao sereno e aos morcegos, tadinho! Acordou, abriu os olhos, levantou a cabeça, remexeu-se. A sombra do carroceiro atravessava a cerca, a bosta, o chão, e foi se apagando cheia de psius, carinhosa, mansinha.
– Sou eu, amigo velho.
Os calos do homem alisaram a testa do antigo puxador de carroça, e o curral se encheu de cicios.
– Meu boi bonito, eu vim fugido, feito um gatinho, sem alarido, muito contrito, para bem pertinho só de você.
Explicou Zé Carroceiro o motivo daquela visita tão fora de horas, enquanto o boi concordava com as preocupações de sou protetor.
Ao fim do entendimento, deixaram ambos o curral e, pelos becos mais escuros, alcançaram o quintal da palhoça do homem.
- II -
Amontoados defronte o prédio da Prefeitura, os flagelados assopravam o sol. Queriam comida e providências, água e satisfações.
– Mate aquele boi.
Raimundo Pitanga se empapava de suor e cuspia soluções. A verba chegava de trem, o governo não ia falhar. Esquecessem o animal, funcionário da municipalidade.
Os homens escarravam, caras de herege, e num instante o cuspe virava mancha na calçada.
– Conversa para fazer boi dormir.
- III -
Num meio de noite, Zé deu um berro do tamanho do mundo e só faltou cair da rede. Maria não morreu, porém os meninos choraram até de manhã.
– Pesadelo doido, mulher.
A velha acendeu a lamparina e mandou os filhos de volta às fiangas.
– Doidice desse doido.
Na parede, o carroceiro cresceu, cabeça de tacho, orelhas de abano, ombros de aleijado, pernas de sete-léguas.
Tremia a chama da candeia e ora a venta de fole do narrador tomava o lugar de uma orelha, ora sua mão de alabarda destelhava a cabana.
Os meninos soluçavam uns por cima dos outros, cobertos de olhos por todos os lados, arrependidos de todos os pecados, mãezinha do céu.
O pai procurava facões debaixo dos pés e a mãe o agarrava pelas costelas e implorava a Deus.
- IV -
Plantado no quintal de Zé Carroceiro, o boi balançava as orelhas, o rabo e a caceta, guarda da casa de seu colega de lixo. Cuidou, o chão tremia. Varava a terra o dragão do fim do mundo ou andava ao léu a leva dos sem-terra? Esbugalhou os olhos na direção da assombração. Qual nada de fabuloso! Marchavam sobre o quintal eram os bichinhos de dois pés. Vinha nu e enfurecido o safado do prefeito, armado de espingarda. Junto ao seu ombro direito, Luiz Macedo carregava munição. Nos calcanhares deles, Joaquim Traçalha, e mais atrás Manoel Cotia abraçava buchas e mais buchas.
– Lá está ele.
Engrossava a procissão toda nação de gente, olhos fitos no boi, garras e dentes de fora, feito feras.
Enquanto o diabo esfregava o olho, derrubaram a cerca e cercaram o boi. À primeira cutelada, minou sangue dos chifres e ninguém podia contar as mãos que açoitavam o condenado.
Súbito Raimundo Pitanga ordenou silêncio e calma e se dirigiu à turba para uma última questão: queriam mesmo o boi ou preferiam esperar pela verba?
– O boi.
Então o prefeito se afastou e deu passagem aos urubus, que voltaram a surrar o animal.
Um deles correu a um canto da cerca, colheu uns galhos espinhentos, engendrou uma coroa e se precipitou para o local do sacrifício. E coroou o boi, em meio a gargalhadas.
– Salve, boi dos sertanejos.
E davam-lhe bofetadas, cuspiam-no, feriam-no com suas armas.
Tiveram a idéia de fazer uma cruz para maior alegria do pagode, saírem pelas ruas e crucificarem o boi, porém o dia amanhecia e urgia preparar o almoço.
E as todas facas da fome tiravam do boi o couro, rasgavam as carnes duras, faziam de matadouro o quintal do carroceiro, mineiros à cata d'ouro.
Junho/1980 a julho/1982.