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quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Vasto abismo - terceira parte (Nilto Maciel)

























Humberto não sabia explicar, mas sentiu que aquele homem magro, moreno e feio seria, ou já era, seu inimigo. Lembrava-se perfeitamente daquele fim de tarde, do calor, da agitação nas ruas. Havia no ar algo de diferente dos outros dias. Talvez uma molécula de ódio. Como um ser invisível, a voar em torno de sua cabeça. O demônio, qualquer espírito mau.
Vânia conversava animadamente com o sujeito. Certamente tramavam novos encontros. E aquele devia ser o décimo, o centésimo.
O momento exato do surgimento do diabinho deve ter sido quando foram apresentados um ao outro: “Isaque, meu marido; Humberto, um amigo.” Ou logo a seguir, quando Isaque se retirou, apressado. Provavelmente com medo, rabo entre as pernas, feito cachorro.
Um dia teria que acontecer aquilo. Mesmo não sendo comum ir à biblioteca buscá-la. Naquele dia, porém, conseguira sair mais cedo do quartel. E decidira encontrar Vânia. Doutras vezes nada disso lhe passava pela cabeça. Ia para casa, ficava na rua, procurava amigos, tomava cerveja. Daquela vez, porém, o demônio já devia rondar-lhe a testa. Um dia aconteceria o pior.
Há algum tempo, no entanto, percebia nervosismo em Vânia. Por tudo se irritava. E alegava excesso de trabalho. O chefe exigia demais, os colegas não colaboravam. Discutiam quase todo dia. Chegaram a falar em separação, divórcio. E os meninos? Quem cuidaria deles? Ela se arrependia, chorava, pedia desculpas.
Até então Humberto de nada suspeitava. Não lhe chegava à cabeça nenhuma idéia de adultério. Acreditava no amor de Vânia. Na sua sinceridade, na sua honestidade.
Mas vieram os poemas de Salústio, e o veneno da dúvida se instalou no peito do sargento. Nenhum mal haveria se os versos fossem de Camões ou de Vinícius. Poderiam até ser de Gregório de Mattos. O mal estava em terem sido copiados por um amigo de Vânia. De quem eram os versos? “De um poeta romano.” E desde quando ela gostava de versos? Ali havia mistério, com certeza.
Por que mentia? Por que aceitara a papelada? Talvez não imaginasse que o marido lesse um só verso. Ou, mesmo lendo, não percebesse seu teor. Ingênua! Chamava-o de burro e agia tão asnamente. Ou pusera em prática a teoria de que o esconderijo mais seguro é o guarda-roupa do chifrudo.
Humberto ainda quis exigir explicações de Vânia. Não, talvez não valesse a pena. Afinal, toda mulher é tentada com palavras e gestos. Mesmo as feias, ou as mais feias. O que dizer, então, de Vânia? Muitas vezes percebia os olhares ávidos dos homens, absortos à passagem dela. Sim, tudo nela chamava a atenção: o porte, as ancas, os cabelos lisos e castanhos, o rosto bem delineado, o jeito de olhar, falar, andar. Portanto, o tal amigo dos versos romanos devia ser apenas mais um tentador à espreita da bela presa.
Mas outros versos apareceram entre os objetos de Vânia, em suas bolsas, em gavetas. Com certeza escritos pelo amiguinho brasileiro, o tal Isaque, embora não houvesse neles indicação de autoria. Pois soavam bem atuais, diferentemente dos primeiros. Em vez de Vênus, vestais e quimeras, só uma mortal neles aparecia – Vânia. Como no “Soneto da paixão insana”. O cúmulo da indecência!
Ainda assim preferiu Humberto esperar. Aquilo não significava traição de sua mulher. Não podia acusá-la de nada. Talvez de receber versos de um dom-juan. Que é o mesmo que ouvir palavras de sedução na rua. E toda mulher as ouve. Até as surdas.
Pensou em falar aos irmãos. Ou apenas a um deles – Artur. Vez por outra trocavam idéias, confessavam pequenos pecados. Um confiava no outro. Desistiu da idéia. Artur poderia tomar alguma decisão precipitada. Talvez até agisse sozinho, com uso de violência. Melhor procurar um amigo, algum colega de farda. Seus familiares jamais saberiam a verdade. Lembrou-se de Fernandes. E o convidou para uma cervejada. Quem mais iria ao bar? Ninguém. Precisava fazer uma confidência.
Tomaram duas cervejas, e nada de Humberto contar o segredo. O outro chegou a se aborrecer. Se Humberto não confiava nele, por que fizera o convite?
A história terminou mal contada. Os personagens não se chamavam Vânia, Humberto e Isaque. De qualquer forma, havia um poeta que enviava versos a uma mulher casada. Aquilo só podia ser coisa de veado.
Não soube quantas cervejas tomou. Só voltou para casa tarde da noite. Vânia fingia estar adormecida. Humberto pôs-se a despi-la e ainda ela apenas resmungava, como sempre. Tudo fingimento dela. E ele gostava que fosse assim. Talvez o estranho desejo de possuí-la em sonho.
Como de outras vezes, ela disse que o amava muito e ele repetiu que adorava possuí-la. Repetiu também a ameaça: se soubesse de qualquer traição dela, matava-a. Vânia mais uma vez reafirmou fidelidade conjugal.
E estava mais acordada do que nunca.

(Continua)