I
Darcy Damasceno (1922-1988) trabalhou por mais de 30 anos, de 1951 a 1982, na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. A par de seu trabalho como funcionário público federal, desenvolveu carreira como poeta que só não alcançou público maior em razão da própria modéstia de Damasceno que, sem ânimo para andar atrás de editores mais preocupados com valores nada literários, limitou-se a publicar seus poemas em edições de tiragens reduzidas e fora do circuito comercial. Além de tradutor de incontáveis méritos, foi estudioso da literatura brasileira, destacando-se como exegeta da obra de Cecília Meireles (1901-1964), sobre a qual escreveu excelentes ensaios, que ainda hoje servem para fundamentar muitas dissertações e teses universitárias.
Para recuperar parte do trabalho de Damasceno como crítico e pesquisador, sua viúva Iracilda e Antonio Carlos Secchin, doutor em Letras, professor titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro e o mais jovem membro da Academia Brasileira de Letras, acabam de reunir em De Gregório a Cecília (Rio de Janeiro, Edições Galo Branco, 2007) 25 ensaios e artigos que estavam, muitos deles, esquecidos no fundo de uma gaveta – sem nunca terem conhecido letra de imprensa – ou dormiam o sono solto dos arquivos, publicados que haviam sido em jornais ou publicações hoje de difícil acesso.
São textos que deixam à mostra a preocupação que Damasceno tinha de valorizar a literatura brasileira, especialmente dos séculos XVII, XVIII e XIX, embora mostrasse a mesma desenvoltura quando se aprofundava na obra de autores estrangeiros, como o toledano Garcilaso de la Veja (1501/1503?-1536) e o alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843), ou ainda quando abordava um poeta contemporâneo como Fernando Pessoa (1888-1935), como mostra o ensaio “Sobre as Odes de Ricardo Reis”, que deixou inédito e os organizadores recolheram em De Gregório a Cecília.
II
Como diz o professor Secchin na apresentação que escreveu para este livro, Damasceno como poeta pode ser situado como um dos nomes centrais da Geração de 45, a partir de títulos como Poemas (Rio de Janeiro, Pongetti,1946); Fábula serena (Rio de Janeiro, Orfeu, 1949), Jogral caçurro e outros poemas (Rio de Janeiro, Livros de Portugal,1958), Trigésima (Rio de Janeiro, Orfeu, 1967), Poesia (Rio de Janeiro, Orfeu, 1967) e Poesia, modificada pelo autor e acrescida dos poemas inéditos de Noites claras (Rio de Janeiro, Gráfica JB, 1988), edição póstuma, além de expressiva participação nas mais representativas antologias do movimento.
Como tradutor, destacam-se O cemitério marinho, de Paul Valéry, publicado em 1941 (Rio de Janeiro, Orfeu) e em 1960 (Salvador, Dinamene), Poesia espanhola: ensaio de métodos e limites estilísticos, de Damaso Alonso, saído em 1960 (Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro), e Poesia, de Saint-John, de 1969 (Rio de Janeiro, Delta Editora), entre outros.
No ensaísmo, seu nome ficou desde sempre associado à obra de Cecília Meireles, de quem escreveu "Poesia do sensível e do imaginário", texto de abertura da primeira edição de Poemas reunidos, de 1958. Como lembra Secchin, destacou-se ainda pelo exame criterioso da obra do poeta que constitui o maior desafio ecdótico das nossas letras: Gregório de Matos. É de sua responsabilidade também o texto sobre O Neoparnasianismo em A literatura no Brasil, vol. 3, tomo 1 (Rio de Janeiro, Livraria São José, 1959).
A partir de 1973, começou a editar em nove volumes as Poesias Completas de Cecília Meireles, pela editora Civilização Brasileira, em louvável esforço de pesquisa. Os cinco primeiros volumes seguiram uma seqüência cronológica que se inicia em 1939, com Viagem, e finda em 1964, com a Crônica trovada da cidade de Sam Sebastiam do Rio de Janeiro. O número 6, de 1973, porém, retrocede aos anos 20, misturando material nunca publicado (Morena, pena de amor), dois livros lançados, respectivamente, em 1923, Nunca mais, e 1925, Baladas para El-Rei, pela primeira vez reeditados.
Nos demais volumes, há uma série de poemas que ainda não haviam sido incluídos em livro e um livro em esboço, além de poemas que não haviam sido dados como prontos pela poetisa. Em 1994, ao trabalhar a quarta edição da obra de Cecília Meireles pela editora Aguilar, Walmir Ayala (1933-1991) incorporou todo o material recolhido por Damasceno.
III
Em De Gregório a Cecília, há vários estudos que não chegaram à versão definitiva, mas que mostram “o lastro do ensaísta, a acuidade do crítico, a paciência e a minúcia do pesquisador que (Damasceno) sempre foi”, como observa Iracilda na apresentação. Um desses ensaios é “A estréia de Cecília Meireles” em que o crítico recupera sonetos do final da adolescência da poetisa (1917-1919) que “não permitiam que se esperasse dela nenhum rasgo mais diferenciado em relação a tantos outros manejadores de esdrúxulos”.
Já em “A morte, casulo da vida”, só recentemente publicado na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, nº 49, out.dez.2006, pp.159-167, também incluído neste livro, Damasceno conta do encantamento que os estudos de Genealogia despertavam em Cecília Meireles. Um encantamento que se reflete em versos que fazem referência aos seus ancestrais açorianos e que, inclusive, a levou em 1951 a uma visita aos Açores, especialmente a ilha de São Miguel. A essa época, diria Cecília Meireles:
Se me perguntarem o que me traz aos Açores, apenas posso responder: a minha infância. A minha infância: o romanceiro e as histórias encantadas; a Bela Infanta e as bruxas; as cantigas e as parlendas; o sentimento do mar e da solidão; a memória dos naufrágios e a pesca da baleia; os laranjais entristecidos e a consciência dos exílios.
IV
Outro ensaio que se manteve inédito é “Quando se escreveu a biografia de Gregório de Matos?”, em que o Damasceno procura estabelecer por volta de fins dos anos 30 do século XVIII a entrada em circulação da biografia de Gregório de Matos atribuída ao licenciado Manuel Pereira Rabelo, que na década seguinte teria sido copiada, alterada, acrescentada e resumida por mais de um “outro engenho”. Com isso, o crítico contestava James Amado, estudioso e organizador da obra de Gregório de Matos, que, colocando em dúvida a tradição, creditava o escrito ao começo do século XVIII.
Como estava inédito, obviamente, este trabalho não foi levado em conta por Adriano Espínola, poeta, crítico e professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Ceará, que, em As artes de enganar: um estudo das máscaras poéticas e biográficas de Gregório de Mattos (Rio de Janeiro, Topbooks, 2000), levantou uma hipótese que tem dado panos para manga: a de que o licenciado seria uma persona, ou seja, uma máscara do próprio Gregório de Matos, “através da qual o poeta pôde recontar sua vida, “protegido” pelo disfarce alonímico”.
É esta uma hipótese fascinante – pois, com este disfarce, Gregório de Matos teria tido a oportunidade de fazer altos elogios à sua pessoa, à família, à mãe, aos irmãos e ao filho, bem como às atitudes tomadas em vários momentos de sua vida –, mas que carece de comprovação, pois a ausência de documentos não prova a inexistência de um tal licenciado Manuel Pereira Rabelo. Na Torre do Tombo, Espínola até localizou três pessoas de uma mesma família com esse nome, mas cujas circunstâncias de vida não permitiam nenhuma aproximação a Gregório de Matos.
Núcleo de trabalho de doutoramento em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, que teve a orientação de Antonio Carlos Secchin, a hipótese de Espínola não recebeu a concordância de Wilson Martins (1921), um dos decanos da crítica brasileira ao lado de Antonio Candido (1918), que, à época do lançamento do livro, rechaçou-a por falta de consistência documental e voltou a atacá-la recentemente em artigo publicado na Gazeta do Povo, de Curitiba, em 29/12/2007. É de imaginar o que diria Darcy Damasceno, conhecedor profundo dos códices gregorianos da Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, a respeito dessa hipótese, no mínimo, intrigante e polêmica, levando-se em conta, inclusive, o que escreve em “Duas linguagens do barroco brasileiro”, ensaio igualmente inédito que abre De Gregório a Cecília.
V
Dividido em três secções, abrangendo a poesia, a ficção e o teatro, o livro ainda resgata ensaios importantes como “Correspondência inédita de Manuel Antônio de Almeida”, publicado na Revista do Livro, nº 12, de dezembro de 1958, precedido de texto inédito, em que Damasceno, além de traçar um breve perfil biográfico do autor de Memórias de um sargento de milícias (1854), recupera cartas da lavra do romancista que identificou na correspondência de Francisco Ramos Paz (1838-1919), um caixeiro semi-alfabetizado que, nascido em Viana do Castelo, chegou ao Brasil em 1850 e, em dez anos, tornou-se jornalista e amigo de muitos intelectuais do Rio de Janeiro.
No acervo de Ramos Paz, que reúne livros raros, primeiras edições, folhetos e manuscritos, incorporado ao final da década de 20 à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, são várias as cartas de Manuel Antônio de Macedo (1831-1861) que lançam luz sobre o trecho final de sua vida breve e tumultuada, às vésperas da morte trágica que o marcou como vítima de um naufrágio. Numa delas, dirigida ao romancista José de Alencar (1829-1877), com diz Damasceno, pode-se “avaliar o drama de Almeida em luta contra as exigências do cotidiano, contra as aperturas financeiras, ao mesmo tempo que perceber o crescimento surdo daquele desalento que poucos meses depois iria encontrar seu termo no trágico naufrágio”.
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DE GREGÓRIO A CECÍLIA, de Darcy Damasceno. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 268 págs., 2007. E-mail: sac@edicoesgalobranco.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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