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quinta-feira, 29 de maio de 2008

Terceira dimensão (Rosani Abou Adal)


A cidade nua, sem vestes e sem verde.
São Paulo dorme acompanhada da solidão.
Nada de peixes nos leitos dos rios,
nem flores e frutos nas árvores de cimento.
O amor se fragiliza e se recompõe
entre vigas de concreto e o calor humano.
Uma cidade dividida entre
a riqueza e a pobreza.
Caviar e champanha nas mesas da zona sul
e os farelos nos pratos da periferia.
Colméias nos prédios, casas,
casebres e embaixo das pontes.
A vida em contraste se anula
diante do silêncio dos homens.
Nos jardins as mansões escondem a hipocrisia.
No centro a fome planta sementes nas calçadas.
Na Praça da Sé a Catedral pede clemência
aos homens de boa vontade
e ninguém lhe dá ouvidos.
Um garoto de olhar triste implora
para comprarem lixas de unha.
Sabe, se não vender nada, enfrentará
os olhos mudos da sua mãe ao chegar em casa.
Nas escadarias do metrô um homem
a vender dois isqueiros, oito pilhas,
duas colas ao preço de um real.
Um gato faminto come e devora
a pomba que morreu atropelada.
Na outra esquina um menino pede
um prato de comida e nada consegue.
No calçadão um senhor grita pega ladrão
e ninguém para ajudá-lo.
O policial vem socorrê-lo e não alcança
o assaltante que se perde
entre o mar de camelôs e a população.
Observo a cidade em terceira dimensão
e vejo que São Paulo ainda é
o melhor lugar para se viver.
Na frieza dos concretos as flores humanas
plantam sementes de amor
em nome da Vida.
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segunda-feira, 26 de maio de 2008

Frantic (Rolando Revagliatti*)



Junto a quem busca
serei também buscada
Junto a quem me imagina viverei mais
Intensa vida junta
quem busca.

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“Frantic” (“Busqueda frenetica”), filme dirigido por Roman Polanski.
*Extraídos do livro Trompifai, Libros del Empedrado, Buenos Aires, Argentina, 1997, em tradução por Nilto Maciel.
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quarta-feira, 21 de maio de 2008

Simetria (Ana Maria Ramiro)


(Quadro de Kandinsky)

Leve folha toca o solo

Intento homólogo. Do céu,
icto raio ilumina o branco,
extrai uma labareda, risca
uma chama incontroversa

Forjar o signo
um vórtice no cálice

Leve folha toca o solo
e o dizer destilado escorre
do relicário

Língua,
frágil elo
entre nave e pássaro.
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sábado, 17 de maio de 2008

sobre o amargo do beijo (Jorge Mendes)



você não conhece meus óculos escuros o amor se não ofusca os olhos,
dilata a escuridão
- cioram

sabe, menina feia, o sol do meio dia sempre foi um palhaço assassino comigo. daí esse inverno rigoroso nos olhos, a fúria das esquinas, a solidão dos becos. daí os óculos escuros, menina feia.

então, menina feia, não chega ser completamente injusto dizer que você não será minha adorável putinha e nem eu o seu encantado sapinho.

o negócio, menina feia, é que busco uns sonhos da pesada daquele lado infernal da cabeça. um incêndio abrupto na garoa fria, um calor assim. portanto, menina feia, por pura perversidade, engano as estrelas da hora sublime. decepciono por prazer e fogo aflito deuses e demônios.

estas mãos cavam buracos escuros na claridade das manhãs, você sabe. tenho nada, menina feia. só desespero e horror. sim: pulo do alto pra sentir o gosto do sangue no céu da boca. você, porém, prefere brincar de esconde-esconde, cabra-cega. quer fazer da cidade em ruínas sua casa de bonecas. então foda-se, menina feia.

escuta, menina feia, tem tudo pra dar errado. tenho hábitos de vôos suicidas. meu poema de concreto voador grita na madrugada anêmica dos heróis acrilíricos e o inferno é o lugar mais próximo do paraíso onde posso chegar. estou dizendo, menina feia, que meu futuro não é brilhante. meus olhos não são brilhantes. meus dentes não são brilhantes. a cabeça do meu pau não é brilhante. nada em mim brilha ou quer estéril luz, menina feia.

entenda, menina feia, os cães me farejam o sangue porque desconhecem o nome do medo (e não é porque sou canceriano que a lua vai me fazer de otário, sem chances). ademais, caminho devagar pela escuridão porque tenho febre e dores que causam rupturas. meu amor, aliás, não é relâmpago insípido nem asséptico rosa. antes é azul cortante, nuvem selvagem, osso elétrico, verbo sangrando o ar.

não é pálida nem fóssil jardim minha palavra no vento voraz, menina feia. por outro lado, menina feia, você sabe que perdi na rodada do SEJA CANALHA SORRINDO (prometo ganhar na roleta russa, creia), meus navios e arco-íris naufragaram na tarde dos ratos e, contudo, menina feia, - e isso nem eu e nem você entendemos direito - entro no oxidável mundo das aparências de peito aberto e sigo respirando pássaros mortos nos ambientes neutros, na boa.

assim sendo, menina feia, sinceramente, era pra ter entrado de corpo e alma no fogo. era pra ter se aberto e se entregado e chupado gostoso. era pra ter caído em queda livre, ter virado ave do paraíso, menina feia. você não quis ou não conseguiu. fez cu doce. estacionou na beirinha do abismo e ficou ali olhando a paisagem cinza sem saber que a luz é indolor mas que a claridade cega, amor.

in http://aofimdanoite.zip.net/

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quinta-feira, 15 de maio de 2008

Flores de vidro à Primavera (Henrique Marques Samyn)




No Campo de Santana fazia sempre o mesmo percurso: colhia, cuidadoso, as várias flores, nunca ao acaso – escolhia-as cuidadoso, com silêncio e parcimônia. Com os dedos tangia as folhas, retia as pétalas, vagaroso: só depois de sentir-lhes a tez e medir-lhes inteiras, cores e cheiros, podia colher as flores de exata medida para o seu intento – e ao fim da longa procura, sentava-se num banco, solitário, e punha-se a armar os ramalhetes: com vão esforço os tecia, fazendo-os ásperos e assimétricos. Suas mãos, cinzentas e grossas, sempre feriam as frágeis flores; rompia os caules ao entrançá-los – mas portava-se, ainda assim, como o mais severo ourives. Ao fim, erguia o corpo e retomava a caminhada – e como era hilária a figura: medido cada passo, crispadas ambas as mãos, agindo qual levasse vítreas flores nos seus braços. Pisadas dolorosas coxeavam sobre o asfalto; claudicante, a seca sombra oscilava sob o sol – repetia, todos os dias, um mesmo ritual. Quedo, achegava-se à amada; enquanto a fitava em silêncio, deitava aos seus pés as flores. Ela, inerte e fria, impávida e rija pedra: estátua que, como estátua, não podia vê-lo ou ouvi-lo – e que, em sua indiferença, permanecia a fitar o horizonte, lábios e olhos opacos, eterna distância do amor. Inércia que ele não via – não via ou queria não ver: todos os dias, voltava aos gestos, num afeto inabalável. E fiel se conservava, pois mantinha-se em vigília: quando chegava à amada, nos braços as flores de vidro, e via os pássaros a cercá-la, lançava-se ao combate – em meio aos curiosos, nunca poucos, que o fitavam: ingentes gargalhadas, inaudíveis, pois tão altas –, cumpria o seu dever: brandindo um pedaço de pau, gritava, pulava e lutava, valente em defesa da dama, com seus golpes, afoitos, equívocos; pombos, pardais revoavam, deixando uma chuva de penas; raramente algum era atingido. Quando enfim não restavam mais pássaros, seus braços pendiam, exaustos; a espada que achara em improviso tombava, esquecida, no asfalto. Então, com o olhar embaçado, deixava-se estar, cabisbaixo – ao redor, entre risos, fitavam-no os muitos rostos, em turvo suspense – limpava o suor do pescoço com as costas da mão enrugada, a barba cinzenta e rançosa, e corria de encontro à estátua – e a abraçava, a chorar, aos soluços, aos soluços, aos soluços; e, em meio aos alegres aplausos, gargalhadas, risos e estrépitos, chegava aos pés da estátua, claudicante andar solene, e ali deitava as flores, assimétricos buquês, frágeis flores de vidro.

No Campo de Santana fazia sempre o mesmo percurso: todos os dias, a mesma batalha, a animada platéia a seguir-lhe os passos. As crianças que o imitavam na escolha das flores, colhendo-as falsas: misturavam os ramalhetes, profanavam o exato gesto – e ele, a resmungar, retirava-os dos pés da amada: falsos buquês, falsos presentes, trançados com pérfida perfeição. Desfazia-os e, resmungando, os jogava em pedaços – sórdidas pétalas, vis, os canalhas! Porque ele, só ele, a amava – ele, apenas ele, o mais fiel dos servidores –
e um dia eles chegaram.

Pivetes, não mais que pivetes. Ficavam pelas redondezas, pedra e cachaça, cola e cerveja. Quando Anelísia foi morta, foram vistos andando por perto: Anelísia, travesti, vivia na Central, tinha ali seu ponto. Pobre e negra, não deixava desaforo sem revide: eles, em bando, a cercaram – entre os risos, doze facadas: no dia em que ela foi morta, foram vistos andando por perto; no entanto, era só Anelísia. Travestido, o cadáver à noite – a essas mortes, só resta o silêncio.

Eis que um dia eles chegaram e o viram fazer o seu percurso; e o viram colher as flores, e andar, canhestro e zeloso; e viram seu amor, torvo e austero, pedra e rito. E porque tudo viram, não tardaram a, entre risos, partir também ao combate: armaram-se, paus e pedras, puseram-se ao lado da estátua – e ele, ao longe, em cuidado, a colher as flores de vidro. Teceu seus tortos buquês, como pedia o ritual, e pôs-se a caminhar: sua amada o esperava.
Dolorosos passos curtos, caminhava, claudicante, e solene qual levasse vítreas flores nos seus braços. Enfim, chegou à estátua, e viu o bando ao seu redor: não pássaros, mas pivetes – armados com paus e pedras, e ao redor a multidão: estudantes e aposentados, camelôs e policiais, mulheres e vagabundos – olhares ansiosos entre os risos sussurrados.

Ele não hesitou: avançou de encontro aos muitos, em riste o pedaço de pau – e avançaram de encontro a ele. Em meio ao Campo de Santana, teve lugar o combate: ele lutava em silêncio, eles batiam-lhe aos risos – ao longe as vozes gritavam, porque o sangue lhe cobria: sob as rotas, velhas vestes, eclodiam manchas rubras, o corpo tombava aos poucos,
cercavam-lhe os paus e as pedras – cinco ou seis policiais saíram do meio da multidão e puseram um fim à algazarra. Correram os muitos pivetes; no chão um mendigo caído, flores de vidro estraçalhadas. Levaram-no, e para sempre: se vive, ninguém mais sabe.

No Campo de Santana permanece, inerte, a estátua. Seminua, celebra a primavera – solitária: quem passa não a vê. Ainda assim, visitam-na, por vezes, parcos pássaros.

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sábado, 10 de maio de 2008

Fortaleza antiga, uma cidade em prosa e verso (Batista de Lima)


(Fortaleza antiga)

Pacheco Espinoza é autor do mais antigo texto literário de exaltação a Fortaleza. Data de 1813 o seu soneto decassilábico e neoclássico, “Para o chafariz da cidade de Fortaleza”, em que é exaltada a figura do Governador Sampaio por criar aquele benefício para a vila. Ao mesmo tempo a cidade é enaltecida pelo seu desenvolvimento que já se estampa em algumas ruas. “Este manancial de água, o primeiro,/ Que fez surgir na Vila arte prestante,/ Para a sede saciar o caminhante,/O sábio, o nobre, o rico, o jornaleiro.”

Em 1856 Juvenal Galeno inaugurou o romantismo no Ceará com a publicação de seu livro de poemas Prelúdios poéticos. Juvenal Galeno era um apaixonado por Fortaleza e pelo Ceará. Centrou sua literatura na sua terra natal. Cantou as coisas da terra, o cajueiro e a jangada, principalmente. “Minha jangada de vela,/ Que vento queres levar?/ Tu queres vento da terra,/ Ou queres vento do mar?”

Na prosa é importante destacar escritores que encararam Fortaleza de forma diversa: Adolfo Caminha, Oliveira Paiva, Gustavo Barroso e Jáder de Carvalho. Adolfo Caminha, no seu romance A normalista, faz uma literatura de catarse, uma obra de maldizer da cidade. É um livro de crítica ao preconceito social existente na cidade de Alencar. Oliveira Paiva na sua novela A afilhada, não se envolve na narrativa. Destaca-se nessa obra, sua descrição da cidade de Fortaleza na última década do século XIX. As ruas da cidade são bem apresentadas, mostrando a importância do plano de urbanização de autoria do Dr. Silva Paulet. Gustavo Barroso em Coração de Menino, Liceu do Ceará e Consulado da China revisita Fortaleza com um certo tom nostálgico. São três livros de memórias suas e da cidade.

É também de Gustavo Barroso um dos mais belos cantos de louvor a Fortaleza, no caso, o "Hino de Fortaleza", com letra sua e música de Antônio Gondim. É uma letra que fala em "virente coqueiro", em "Iracema lembrando o guerreiro", no "mar nas areias ardentes", fala ainda de jangadeiros e chama Fortaleza de "a flor do Brasil". É por demais repetido seu estribilho: “Fortaleza! Fortaleza!/ Irmã do sol e do mar:/ Fortaleza! Fortaleza!/ Sempre havemos de te amar”.

Jáder de Carvalho, no seu livro Aldeota, apresenta de forma romanceada, a trajetória de um personagem de nome Chicó, que originado do sertão do Ceará, na região de Cariús, transfere-se para a Amazônia onde se torna arigó e depois volta para o nosso Estado, fixando residência em Fortaleza, onde enrica através de métodos fraudulentos. Chicó é uma figura picaresca que passa pelas mais variadas funções, até se tornar habitante da Aldeota, bairro nobre de Fortaleza, composto de bangalôs de importantes famílias, entre as quais algumas que enriqueceram com a sonegação de impostos, com o contrabando, com todo tipo de espertezas que se possa fazer para auferir riquezas.

Entretanto, não foi só o cearense que cantou Fortaleza. Há aqueles que se encantaram com essa terra e cantaram-na de alguma forma. É o caso do poeta pernambucano Manuel Bandeira que por aqui passando quando se dirigia à Serra do Estêvão, em Quixadá, em busca de saúde, cantou os verdes mares fortalezenses: “Clama uma voz amiga: – "Aí tem o Ceará"./ E eu, que nas ondas punha a vista deslumbrada,/ Olho a cidade. Ao sol chispa a areia doirada.”

Um dos elementos lembrados por Manuel Bandeira em seu poema é o sol, o mesmo sol que Paula Ney fez desposar a cidade, no seu célebre poema "Fortaleza", cujo primeiro quarteto assim se apresenta: “Ao longe, em brancas praias, embalada/ Pelas ondas azuis dos verdes mares,/ A Fortaleza – a loura desposada/ Do sol – dormita, à sombra dos palmares.”

Não é um poema primoroso, inclusive com algumas achegas apontadas por Sânzio de Azevedo em seu livro A Literatura Cearense, mas imortalizou a expressão "Fortaleza- a loura desposada do sol", a ponto de outros escritores também referirem-se a essa loirice, como é o caso de Francisco Carvalho quando canta: “Ó loira e bela Fortaleza amada,/ Vem escutar meu sonoroso canto/ Que agora mesmo, para o céu levanto,/ A fim de honrar-te a gleba benfalada/”.

Assim como Francisco Carvalho, outro poeta que saudou poeticamente Fortaleza foi Otacílio Colares através do poema "Descante à cidade amada", onde apresenta tipos populares como: Chagas dos Carneiros, Jararaca, Zé Levi, Cheira-Dedos, Mimosa, Zé Lapada, Cabeção e a Siri. Nesse descante de Otacílio Colares poder-se-ia acrescentar o bode iôiô, Canoa Doida, Manezinho do Bispo, Burra Preta, Roberto Carlos, Vassoura, Zé Tatá etc. Esse é um dos 173 poemas que fazem parte do Cancioneiro da Cidade de Fortaleza, organizado por Artur Eduardo Benevides.

O próprio Artur Eduardo Benevides aparece como autor de um dos melhores poemas da coletânea, no caso, "Canto de amor a Fortaleza", onde ele diz: “(...) ó grande flor atlântica/ plantada mais em nós do que no chão.” Caracteriza-se esse cancioneiro por encerrar em suas páginas quase todos os poemas sobre nossa cidade. Isso levou à veiculação de muitos textos que se querem poemas mas que muitas vezes são apenas aglomerados verbais de encômios à cidade amada. Daí que dentre os poucos e belos textos sobre nossa metrópole, pode-se dizer que o melhor momento é exatamente a presença do único texto em prosa do volume, no caso, “Terna louvação”, de autoria do organizador. No texto, Artur Eduardo Benevides trata a cidade de “musa” e apela para seu “claro rosto e graça delicada”, chamando-a de “menina e mulher, ave e canção”, “cidade de ruas tão alinhadas como os versos de um soneto”, refere-se por fim ao “rosto hermoso” que Pinzon avistou quando aqui chegou. Esse cancioneiro constitui uma homenagem da Prefeitura Municipal ao sesquicentenário de Fortaleza, na administração do Prefeito Vicente Fialho em 1973. No seu canto de apresentação, Artur Eduardo Benevides não esqueceu de citar os folguedos que marcaram época na cidade: serenatas, cirandas, pastorinhas, retretas, fandangos, modinhas, minuetos, quadrilhas, varsovianas, a prenda, o anel, o santo, o solo inglês, a cabra cega, congos, lapinhas, pastorinhas e o boi surubim.

Cita ainda as valsas, as canções, as polcas, os dobrados, os hinos patrióticos. O Cancioneiro da cidade de Fortaleza é uma comprovação de que o fortalezense transmite seu amor à cidade quase sempre em forma de canção, não importa como. É o caso de Otacílio de Azevedo com seu livro Fortaleza descalça; Herman Lima, com Poesia do Tempo; Monsenhor Quinderé, com Reminiscências; Mozart Soriano Aderaldo, com História abreviada de Fortaleza; Raimundo Girão, com Fortaleza e a crônica histórica; Juarez Leitão, com Sábado: estação de viver; Sebastião Rogério Ponte, com Fortaleza belle-époque e Blanchard Girão, com O Liceu e o bonde, Narcélio Limaverde, Eduardo Campos com as peças teatrais Morro do Ouro e Rosa do Lagamar, Ciro Colares, Faria Guilherme e outros.

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quarta-feira, 7 de maio de 2008

Virginia Woolf: uma leitora incomum (Clauder Arcanjo)


(Virginia Woolf)

A escritora inglesa Virginia Woolf é uma das minhas obsessões. Há poucos dias, na minha eterna mania de catar obras nas livrarias durante as viagens, deparei-me com um exemplar de O Leitor Comum. De início, aagradável surpresa. Há tempos procurava uma edição, em língua portuguesa, desse clássico de Virginia. Comprei e corri para o hotel, janteifrugalmente, tomei um banho rápido, e fui para a cama na companhia da autora de Orlando.

Coletânea de ensaios sem o ranço do academicismo, com a profundidade e atransparência dos grandes mestres, mas sem presunção, nem o menor enfado. Logo no texto de abertura, que dá título ao livro, uma demonstração inequívoca do talento de Woolf. E fico com a ligeira sensação de que,“talvez, valerá a pena prosseguir escrevendo algumas idéias e opiniões que, insignificantes em si mesmas, irão contribuir muitíssimo para umresultado”. Muitos ensaístas me aborrecem porque sufocam minha imaginação em lugar decolocá-la para funcionar. Não é o caso de Virginia, parafraseando-a: em cada passagem que leio, a presença discreta de quem sabe “revelar-nos osuficiente para que adivinhemos o restante”. Ou seja, “sugerir peladescrição, não revelar pela iluminação”. No ensaio “Montaigne”, um dos retratos mais sublimes do mestre francês, descreve-o como se fosse um relato sobre si mesma, “seguindo as próprias fantasias, dando o mapacompleto, o peso, a cor, e o diâmetro da alma em sua desordem, sua polimorfia, sua imperfeição”. Essa arte pertenceu a duas pessoas apenas, concluo: a Montaigne e a Virginia.

Em meio a todo esse rico universo crítico, alguns valiosos conselhos: “Ao escrever, escolha as palavras cotidianas; escape dos exageros e da eloqüência”. Para logo arrematar: “Porém, é bem verdade, a poesia é umadelícia; a melhor prosa é aquela que mais estiver entranhada de poesia”. Logo adiante, Virginia adverte-nos: “Leis são meras convenções, incapazesde salvaguardar vestígios da imensa variedade e do tumulto dos impulsoshumanos; os hábitos e os costumes são conveniências tramadas como amparopara naturezas tímidas que não ousam permitir a suas almas movimentos livres”. O Leitor Comum foi publicado em Londres pela Hogarth Press, a editora que Virginia Woolf mantinha com o marido, Leonard. Saiu na forma de doispequenos volumes — o primeiro, em 1925; o segundo, em 1932. Há exatos setenta e cinco anos. Mas nada nele prescreveu, são sínteses críticas detal forma apaixonantes que nos dão uma irresistível vontade de ler, ou reler, os clássicos citados, como para conferir, ou colher, tamanha belezaapreendida. Conrad, Jane Austen, Defoe, Dostoiévski, Joyce, Montaigne, Tolstói, Tchekhov, Sterne, dentre outros, se fazem presentes. Apresentadospor uma leitora incomum, “capaz de condensar em poucas palavras o fascínio destes mundos imaginários e verossímeis”. Virginia nos põe sobre os ombrosde cada escritor e nos faz “fitar através de seus olhos até, também, compreendermos em que ordem ele dispõe os variados objetos comuns que os romancistas estão fadados a observar: o homem e a humanidade; por trás deles a Natureza; e sobre todos aquele poder que por conveniência e brevidade devemos chamar de Deus”.

(Texto publicado no jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno Expressão, espaço Questão de Prosa, edição de 26 de agosto de 2007)
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segunda-feira, 5 de maio de 2008

A “missão francesa” em pratos limpos (Adelto Gonçalves*)




I

Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830) foi um pintor francês acadêmico que gostava de pintar paisagens, mas que, obrigado pelas circunstâncias, teve de compor quadros históricos e morar por cinco anos na acanhada e ingênua Rio de Janeiro do início do século 19, a uma época em que a cidade teve de se inventar a si mesma para receber uma corte que, se não se comparava em luxo e riqueza às das grandes nações européias, tinha lá os seus encantos.

Mas, ao contrário do que se lê numa historiografia mais antiga e oficialesca, nem Taunay nem os demais artistas franceses que o acompanharam na travessia pelo Atlântico, formando o que se convencionou chamar de “missão francesa”, vieram a convite do príncípe regente d. João (1767-1826). Vieram mesmo de oferecidos, liderados por Joachim Lebreton (1760-1819), secretário da classe de belas-artes do Instituto de França. Até porque d. João não seria tão parvo a ponto de chamar exatamente artistas que tanto haviam louvaminhado o inimigo francês, que em 1807 forçara a sua vinda para o Brasil.
É o que mostra Lilia Moritz Schwarcz (1957), professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), em seu novo livro, O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João, que acaba de ser lançado pela Companhia das Letras, com apresentação do poeta e africanista Alberto da Costa e Silva, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras e ex-embaixador do Brasil em Portugal.

De fato, os artistas franceses que aportaram no Brasil em 1816 – Taunay, entre eles –, depois de exaltar os feitos de Napoleão Bonaparte (1769-1821) e seu império, vinham descrentes nos destinos da Revolução e desapontados com as oportunidades profissionais que então se apresentavam em Paris. Fugiam, isso sim, da Restauração dos Bourbons, das guerras, das suas desavenças particulares e de uma França que não existia mais.

Vinham por iniciativa própria e dispostos a criar no Rio de Janeiro uma Academia igual à que já existia no México. E, naturalmente, de olho nas burras dos nobres portugueses e grandes comerciantes negreiros cariocas que pudessem pagar por sua arte. Mas só quando já estavam no Rio de Janeiro é que Antônio de Araújo e Azevedo (1754-1817), o conde da Barca, ministro de d.João, animou-se com a idéia de criar no país uma academia semelhante à francesa.

Considerado o membro mais importante do grupo, Taunay pensava mais alto e trazia na bagagem a intenção de se transformar em pintor do rei. Mas, ao contrário do que imaginavam, nem Taunay nem outros artistas que o acompanhavam, como Jean-Baptiste Debret (1768-1848) e Grandjean de Montigny (1776-1850), tiveram vida fácil no Brasil. O que os arquivos mostram é que Taunay escreveu a d.João uma carta oferecendo seus serviços, fosse na qualidade de professor de desenho dos príncipes ou das princesas, fosse no cargo de conservador de seus quadros e estátuas.

Como era comum à época, o pintor humilhou-se e bajulou o quanto pôde o monarca que, como não dispunha de muitas opções, acabou por aceitar a oferta. E, assim, Taunay acabou contratado pelo prazo de seis anos com um vencimento de 800 mil réis, a mesma quantia de seu colega Debret. Mas não se pode dizer que tenha “feito a América”.

De fato, o destino seria bem diferente daquele que Taunay traçara para si antes de deixar a França: sem muito espaço na corte de d.João, o artista iria se refugiar numa propriedade que haveria de adquirir perto de uma cascata – e que imortalizaria num de seus quadros – na Floresta da Tijuca. E, mesmo depois da morte de Lebreton em 1819, nunca alcançou no Brasil uma posição de grande prestígio. Cinco anos depois, decidiu retornar a França, com a situação financeira bastante abalada. Morreu em 1830. Mas, a exemplo de Debret, deixaria muitos quadros sem os quais, hoje, conheceríamos bem menos costumes e aspectos do Brasil, principalmente, do Rio de Janeiro daquele tempo.

II

Diz a investigadora que o ato de misericórdia nas aspirações do grupo francês no Rio de Janeiro foi a criação da Academia Real de Belas Artes em 1820, cujos cargos principais os artistas franceses esperavam que lhes fossem destinados. Mas o pintor Henrique José da Silva (1772-1834) foi mais ágil e habilidoso nos conchavos de bastidores no paço real.

Segundo Lilia Moritz Schwarcz, Henrique da Silva era um “professor e artista português pouco conhecido, bastante desprezado pelos franceses e recém-chegado ao Brasil”, mas foi ele quem ficou com o cargo de diretor da Academia, com um ordenado um pouco superior ao de Taunay, nomeado lente de pintura de paisagem. Teria sido por causa dele que Taunay refez as malas de retorno a França.

Já o padre Luís Rafael Soyé (1760-1831), que também viera para o Rio de Janeiro depois da mudança da corte, ficaria como secretário da Academia e Escola Real, o que irritaria ainda mais os franceses. Debret, por exemplo, chamava os portugueses de “intrusos”, enquanto para os demais integrantes da nova escola os franceses é que eram “estrangeiros intrusos”. Para Debret, Henrique da Silva era “um pintor medíocre e pai de numerosa família” que “vegetava em Lisboa”.

Se alguma informação se pode acrescentar a esse livro, é para dizer que esse Henrique José da Silva foi o mesmo que, em 1804 ou no começo de 1805, subiu os degraus do prédio de nº 11 do Beco de André Valente, no Bairro Alto de Lisboa, para pintar o retrato do poeta Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805). Não se pode dizer que seria um artista de poucas qualidades, pois o quadro que fez de Bocage não fica em nada a dever a tantos quantos Taunay pintou de outras personagens da época. Mas, claro, em paisagens, Taunay era um artista como poucos. E Debret não lhe ficava atrás, embora sua fama tenha mesmo se restringido ao Brasil.

De Bocage como pagamento, o que Henrique José da Silva recebeu foi um soneto em que o poeta lhe agradeceu “o primoroso desempenho” com que o retratou. Mas, depois, é de supor que Henrique da Silva tenha levantado um bom dinheiro graças à fama do poeta, pois chegou a um acordo com o famoso gravador florentino Francesco Giuseppe Eligio Bartolozzi, que viera para Lisboa em 1802, este sim, a convite do príncipe regente para atuar como mestre de gravura na Impressão Régia. Bartolozzi fez uma estampa com base no retrato produzido por Henrique da Silva e, um mês depois da morte de Bocage, abriu subscrição pública para a venda de gravuras com a efígie do poeta.

Como se lê na Gazeta de Lisboa de 21/1/1806, as gravuras foram vendidas a 800 mil réis na Casa da Gazeta, ao Terreiro do Paço, e no café de José Pedro (das Luminárias), ao Rossio. Quatro anos depois, os dois artistas continuavam ganhando dinheiro com as estampas de Bocage. Dos papéis da irmã de Bocage, Maria Francisca, que repousam no Arquivo Distrital de Setúbal, porém, não há registro de que, algum dia, tenha recebido algum tostão por essa iniciativa da dupla.

III

Mas não era só de Henrique da Silva e de Soyé que os franceses se queixavam. Também reclamavam da perseguição de Maler, cônsul francês no Rio de Janeiro, que, obviamente, não podia ver com bons olhos a presença de bonapartistas em solo brasileiro e não perdia oportunidade para insinuar que seriam perigosos conspiradores dispostos a botar fogo no Brasil com seus ideais de revolução.

Fosse como fosse, desiludido, Taunay, o mais velho e graduado dos artistas franceses, percebeu que não teria mesmo muito futuro no Brasil e convenceu-se de que estava mais do que na hora de voltar a Paris, onde, prudentemente, deixara aberta a possibilidade de retornar ao Instituto de França, do qual apenas se licenciara. Lembra a autora que, enquanto permaneceu no Brasil, Taunay seguiu sua “missão particular”, registrando os “seus trópicos”, enquanto Debret se mantinha fiel à tradição de Jacques-Louis David (1748-1825), o pintor preferido de Napoelão Bonaparte, e “procuraria no passado uma solução para o presente”.

Como iluminista, Taunay sempre se sentiu incomodado num país em que os escravos serviam para tudo: até como meio de transporte para que as damas não molhassem os pés, como se pode ver em quadro do artista. E os pintou como figuras extremamente diminutas, como se fossem borrões na tela, talvez para que passassem despercebidos em meio à exuberância da paisagem tropical. Como diz Lilia Moritz Schwarcz, Taunay sempre reclamou da luz excessivamente brilhante da América, dos verdes "excessivos" das florestas e do céu do Rio de Janeiro, que considerava absolutamente "exagerado".

IV

Quem colocou a andar a versão de que d.João teria mandado contratar os artistas franceses foi Hippolyte, único filho de Taunay que retornou com o pai para a França, já que os demais permaneceram no Rio de Janeiro. De sua estada no Brasil, Hippolyte Taunay escreveu, em co-autoria com Ferdinand Denis, Le Brésil ou histoire, moeurs, usages et coutumes des habitants de ce roiyaume (1822), que, além de importante fonte para a compreensão daquele período, fornece uma versão bem parcial da história do pai.

Também o historiador Afonso de Escragnole Taunay (1876-1958), bisneto de Nicolas-Antoine, em A missão artística de 1816 (Brasília, Universidade de Brasília, 1983), iria reforçar a versão de que d. João, influenciado pelo conde da Barca, entre as medidas que imaginara para arrancar o Rio de Janeiro de um atraso secular, mandara buscar artistas na França. Foi esse Taunay quem idealizou o termo “missão” para o que antes era conhecido como “colônia francesa” ou “colônia Lebreton”. Segundo Taunay, esses artistas seriam “abnegados, apaixonados pela arte, valentes trabalhadores” que teriam vindo ao Brasil para arrancar a colônia “da modorra secular”.

Laudelino Freire (1873-1937), em Um século de pintura0 – apontamentos para a história da pintura no Brasil: de 1816 a 1916 (Rio de Janeiro, Tipografia Rohe, 1916), recuperou argumentos utilizados por Henrique José da Silva para mostrar que os artistas franceses haviam chegado ao Rio de Janeiro sem que tivessem sido oficialmente convidados. E o fez com base num texto publicado no Diário Fluminense, de 12 de janeiro de 1828, de autoria anônima, mas redigido evidentemente por partidários do pintor português. Tudo isso contrariou não só Afonso de Escragnole Taunay como o historiador Adolfo Morales de los Rios Filho (1887-1973) que, em 1942, voltou a defender a interpretação hegemônica de que teria havido uma “missão francesa” no Brasil , procurando corrigir o que lhe parecia ser “uma espécie de má fé”.

Fartamente ilustrado, com 103 imagens em preto-e-branco e mais dois cadernos coloridos com 45 telas que Taunay realizou na Europa e no Brasil, O sol do Brasil, além de colocar no lugar muitos fatos da História brasileira do começo do século 19, chega no momento em que ocorrerão duas grandes exposições internacionais sobre a obra do artista: no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro (de maio a junho de 2008) e na Pinacoteca de São Paulo (de julho a setembro de 2008), ambas com curadoria da historiadora.

Entre outros livros excepcionais, Lilia Moritz Schwarcz é autora de Retrato em branco e negro (1987), O espetáculo das raças (1993), As barbas do imperador (1998) e A longa viagem da biblioteca dos reis (em co-autoria com Paulo Azevedo, 2002), todos publicados pela Companhia das Letras. O espetáculo das raças e As barbas do imperador (Prêmio Jabuti/Livro do Ano) também foram publicados pela Farrar, Straus & Giroux Publishers, de Nova York, em 1999 e 2004, respectivamente.

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SOL DO BRASIL: NICOLAS-ANTOINE TAUNAY E AS DESVENTURAS DOS ARTISTAS FRANCESES NA CORTE DE D. JOÃO, de Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, 412 págs., R$ 43,60. E-mail: editora@companhiadasletras.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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