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quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Sonata de silêncio (Clauder Arcanjo)

Para Paulo Bomfim



Antônio Triste, esgotado, após viver três vidas, imensas e misteriosas, naquela fração de tempo que caminha para o repouso de toda hora extinta, encontrou-se com Maria Felicidade. Dama graciosa e bonita, que fora enganada e vendida com seu vestido de chita. “Água que passa” — pensou. “Água que canta em minha tarde” — versejou. 
Hoje, em meio a este mundo de cimento-armado, se indaga: “Onde andará minha amada/ Neste crepúsculo triste,/ Nestas noites sem luar?”. E as árvores, mudas e desfolhadas, não falaram-lhe de amor.
Outros vieram de longe, mas só ele trazia o pensamento banhado em velhos sais e maresias, arrastando velas rotas pelo vento e mastros carregados de agonias. Vindo de longe a contornar a esmo, o cabo das tormentas de si mesmo. Em constante transfiguração. Seguindo a solidão das caravelas, de alma solitária e sedenta, guiando corações insatisfeitos, andando por sobre o tempo que é perdido, buscando o seu mar desconhecido. E, em seu silêncio de rua antiga, poemas esparsos, se fez serenata.
Frente ao relógio de sol, ave sem pouso e sem lar, a sua praia cada vez mais longe do mar, canta trovas. Enquanto dorme tranquilo sobre essas fronhas em festa, a madeira do seu leito tem saudades de floresta. “Outro serei amanhã!”; sonha com esta graça. “Em outras metamorfoses, quando o silêncio for pássaro e as nuvens errantes vozes”; solfeja. Poema do regresso, cantiga do desencontro. Por fora há céus e horizontes, por dentro o tempo embolora, e seus pés vão sangrando pelo crepúsculo a fora. Por fora nuvens galopam, por dentro o mundo embolora... Será a morte que a tudo devora?
“Nunca serei o mesmo na face azul da manhã. Sou prisioneiro do tempo: há minutos vermelhos correndo em minhas veias...” — martiriza-se, poema do silêncio, Antônio Triste.
Levanta-se e professa um poema do futuro, em versos de bom fim, aos quatro cantos silentes à sua descoberta:
— O mundo de amanhã será dos mágicos.../ E eu tirarei da cartola da noite/ Um punhado de estrelas para os teus cabelos./ O mundo de amanhã será dos loucos.../ E eu tecerei com as neblinas da alvorada/ o teu vestido de noiva./ O mundo de amanhã será dos puros.../ E eu te coroarei com as flores do silêncio,/ E reinarás sobre o meu pensamento!
E Antônio Triste e Maria Felicidade, vidrados pela contemplação da noite, beijam-se, não mais com os pulsos atados pela dúvida, no entanto com os olhos cobertos pela poeira dos séculos, e com a palavra poética a cimentar-lhes os lábios partidos. Em tempo reverso — apagam a luz, inventam a noite —, nascendo assim o primeiro e último Casal do Silêncio.
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*Clauder Arcanjo — Professorclauder@pedagogiadagestao.com.br
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