(Da esquerda para a direita, sentados: Nilto, Jorge Tufic e Soares Feitosa, nos jardins da reitoria da Universidade Federal do Ceará)
Recebi (em 96 ou 97) um embrulho volumoso e pesado, de remetente desconhecido. Seria mais um escritor novato em busca de leitor e crítico? Naquela noite, eu pretendia dar mais uns retoques num conto iniciado havia mais de uma semana. Jantaria, conversaria com a família, comentaria os fatos do dia. No entanto, o pacote sobre a escrivaninha me chamava a rasgar seu invólucro. Jantei, pouco conversei e nem prestei atenção às notícias da televisão. Quem seria aquele Soares Feitosa? Violei o papel, sem fúria. E aos meus olhos se mostrou um objeto colorido, de capa dura e muitas páginas, chamado Réquiem em Sol da Tarde. Todo feito em computador, em casa, artesanalmente. Pus-me a ler e me fui fascinando. Sentei-me, para não desmaiar. Permaneci lúcido, acordado, por muitas horas. O resto da noite passei a ler aquela poesia, ao mesmo tempo, seca e úmida, mineral e vegetal, leve e pesada. E fui me entorpecendo, até pegar no sono sobre o dorso do livrão. Pela madrugada, minha companheira me acudiu. Eu adormecera, entorpecido de prazer, como se tivesse me enchido de ópio. Dias depois, mandei carta ao poeta. Ora, eu não sabia de sua existência. Eu e quase ninguém. Porque inédito, escondido, a poetar sem alardes, recluso em casa.
Conheci Soares Feitosa em Brasília, alguns anos depois daquela noite de papoulas imaginárias. Conversa rápida, porque anda sempre com pressa, em razão das lides forenses, viaja para cá e para lá e não dispõe de tempo para parlendas inúteis em bares e outros lugares onde poetas barrigudos ou esguios, e sem tino, costumam destilar (ou dedilhar) suas folhas (ou falhas) literárias. Deu-se numa tarde melancólica, num sábado qualquer. Fui ao encontro dele, endereço anunciado por telefone. Apresentamo-nos, sem necessidade, porque já nos conhecíamos literariamente. E isto basta. Falou e falou, durante quase todo o tempo da reunião. Não falou de si ou de sua poesia. Falou tão-somente do Jornal de Poesia, com um entusiasmo de adolescente. Editor de revistas havia mais de vinte anos, fiz-lhe perguntas de entrevistador: Como você seleciona os poemas e contos? E ele, como se se irritasse (parece estar sempre irritado, de mau-humor), não titubeou: Não faço seleção nenhuma; que o façam os leitores e os críticos. Insisti: Certamente nem tudo é publicado. De certa forma, há uma seleção. Ele se irritou mais, depois sorriu. Ou gargalhou: Sim, há os cupinchas. Se for meu cupincha...
De volta a Fortaleza, em 2002, procurei-o. Eu tencionava, havia muito, criar um jornal do conto na Internet. Marcamos dia, hora e local do encontro. Convidei dois ou três amigos para a visita. Abraçou-nos, ofereceu água e café. Vínhamos esbaforidos, suados, cansados. Não, café não combinava com o nosso sarau. Pelo telefone interno, chamou uma serviçal: Traga rapadura. Um minuto depois, uma cesta com pedaços de rapadura nos foi apresentada. Comam. Essa é a comida do sertanejo. Vocês precisam mesmo é de rapadura da serra. Enquanto comíamos, ele voltou a falar de literatura. E do Jornal de Poesia.
Soares Feitosa não tem papas na língua. Fala tudo, sem rodeios (ou arrodeios), sem vergonha, feito criança. Embora meninão, não faz perguntas, mas afirmações. Mesmo as que mais chocam ou melindram o interlocutor? Você nunca leu a Bíblia; não sabe onde fica o sertão; está perdendo tempo com esse tipo de literatura. Além disso, conhece todo mundo: dos poetas gregos aos cantadores de feira, dos romancistas russos ao mais esquecido escritor dos cafundós. Fala, com desenvoltura, de uns e outros. O cego fulano, o louco sicrano, a mocinha de Cabedelo, o mocinho de Maria Farinha. Nunca os viu e não tem interesse de vê-los. Tem memória como poucos: O poeta beltrano, autor de A mocinha de Cabedelo... Parece ter lido há poucos minutos a obra completa do interlocutor: Nilto, quando o cabra que virou bode saltou, nu, a janela da casa do “coroné”, já sabia que um bode expiatório se preparava, no meio do mato, para salvá-lo da morte.
Soares não faz elogios à-toa, assim como não perde tempo em espicaçar poetas, contistas e romancistas. Se gosta da obra, faz hermenêutica. Destrinça tudo, escarafuncha as vísceras do pergaminho. Não diz trivialidades ou frases pomposas, dessas que se ouvem e leem nas academias, nos jornais, nas esquinas, nos bares (fulano é gênio; a poesia de beltrano é digna de Camões). Talvez nem as ouça: entram por um ouvido e saem pelo outro. Parece ter lido tudo. Ou o essencial de tudo: gregos e troianos, poetas e cronistas bíblicos, latinos e trovadores medievais, Augusto dos Anjos, Castro Alves, Fernando Pessoas (assim mesmo, no plural), cordelistas, cegos aderaldos. Além disso, aprendeu, como poucos, gramática e etimologia. Seria um sábio, um mestre. Ri disso. Tem imaginação de profeta. Sorri. Ora, se não tem vocação para sábio, mestre e profeta, só pode ser poeta. Entretanto, diz ter escrito o primeiro poema após completar 50 anos de idade. É possível.
Os mais moços (eu e ele somos sexagenários) chamam-no rabugento, porque o procuram para ouvir elogios e ver seus versos no Jornal de Poesia. Ele, porém, fala de poemas centenários. E eles não o ouvem. Certa noite, ao redor de uma mesa, num bar do centro cultural Dragão do Mar, ele falava do Gênesis. E contava a história do amor de Jacó por Raquel, e citava versículos da Vulgata: “Habebat vero filias duas: nomen maioris Lia, minor appellabatur Rahel; sed Lia lippis erat oculis, Rahel decora facie et venusto aspectu. Quam diligens Iacob ait: Serviam tibi pro Rachel filia tua minore septem annis”. (Na tradução de João Ferreira de Almeida: “Ora, Labão tinha duas filhas: Lia, a mais velha, e Raquel, a mais moça. Lia tinha os olhos baços, porém Raquel era formosa de porte e de semblante. Jacó amava a Raquel, e disse: Sete anos te servirei por tua filha mais moça, Raquel”). Um engraçadinho, metido a sabichão, pôs-se a declamar: “Sete anos de pastor Jacó servia / Labão, pai de Raquel, serrana bela” (...). Irritado, por ser interrompido, Feitosa se calou e fez menção de se retirar. Pedi-lhe calma, permanecesse, continuasse a história. Entretanto, à sua frente, um poeta e uma poetisa se lambiam. Talvez impulsionados pelo conto genesíaco. Feitosa se irritou mais ainda, não sei se por não o ouvirem, não sei se por quererem representar em público. E sapecou: Isso é uma esculhambação.
Estou devendo mais uma visita a Feitosa. A degustação da rapadura da serra. A disposição para ouvir sua fala de homem com raiva do analfabetismo, da ignorância, da cegueira, da surdez de muitos catedráticos, eruditos, mestres. Estou lhe devendo uma visita para compreender um pouco mais de mim mesmo. Porque Soares Feitosa é também leitor de mentes. Ou de entrelinhas. De entrementes? Melhor dizê-lo oráculo.
Fortaleza, fevereiro de 2010.
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