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sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O sobrevivente (Enéas Athanázio)


Depois de permanecer inédito por mais de sessenta anos, o manuscrito veio a público e o livro desde logo se tornou um dos grandes textos da literatura sobre a II Guerra Mundial. Ao contrário de muitos outros, que foram escritos a posteriori, após os fatos narrados, como páginas de memórias, este foi composto na época contemporânea dos acontecimentos, ao calor dos fatos, quando tudo ainda estava verde e seu impacto repercutia na sensibilidade do narrador. Estou me referindo ao livro “Eu sou o último judeu”, de autoria de Chil Rajchman, publicado pela Editora Zahar, neste ano de 2010. Ele contém o relato direto e cru, sem adornos literários, dos terríveis dias vividos pelo seu autor no campo de extermínio de Trenlinka, na Polônia, entre 1942 e 1943. É difícil imaginar que alguém tivesse suportado tantos e tais sofrimentos e ainda pudesse sobreviver sem perder a razão. O autor e outros sobreviventes (foram 57 no total) é que eram – estes sim – os verdadeiros super-homens! E o mais interessante é que o relato não é carregado de ódio acumulado, mas a exposição de algo consumado contra o que nada mais poderia ser feito e nem poderia ser alterado. Aconteceu assim e como tal foi relatado pelo autor.

Judeu polonês, nascido em Lodz, em 1914, Chil Rajchman, depois de marchas e contramarchas, foi conduzido ao campo de extermínio de Treblinka. Graças à própria esperteza, aliada a boa dose de sorte, escapou das execuções imediatas e passou a viver as mais chocantes experiências, sempre com a aguda sensação de caminhar sobre o fio da navalha, uma vez que pelo mínimo motivo e até mesmo graças ao mau humor de algum SS poderia ser executado com um balaço, de preferência na cabeça, para evitar desperdício de munição. Como integrante dos “Kommandos judeus”, cabia-lhe, no início, transportar cadáveres desde as câmaras de gás até as valas comuns, onde eram lançados. Depois passou ao grupo dos tonsuradores, ou sejam, aqueles que cortavam os cabelos das mulheres, antes das execuções, e os juntavam em caixas. Por fim, como falso dentista, foi designado para arrancar os dentes dos mortos que estivessem obturados para aproveitar o ouro, lavá-los e colocá-los em caixas. A água sanguinolenta da lavagem serviu muitas vezes para aplacar a terrível sede de que padeciam milhares de prisioneiros. Mas o pêndulo da guerra começou a virar; o exército nazista, que parecia invencível, começou a tropeçar e a sombra da derrota passou a perseguir o comando do campo de extermínio. Tornou-se imperioso, então, destruir todos os indícios da mortandade em curto prazo. As valas foram reabertas, os corpos em decomposição retirados e queimados em monumentais fogueiras sempre aperfeiçoadas. Surgiu até quem inventasse formas para torná-las mais eficientes, apelidado pelo humor negro reinante de “o artista.” E assim, entre 700 e 900 mil judeus, homens, mulheres, velhos, crianças, viraram fumaça que subiu aos céus, empestando os ares com o cheiro nauseabundo que se espalhava pela região. “Nenhum campo de extermínio foi tão longe na racionalização do assassinato em massa” – escreveu um historiador. Mas sobreveio a revolta dos presos, em agosto de 1943, e Chil, por verdadeiro milagre, conseguiu fugir. Depois de vencer as maiores dificuldades, inclusive outras prisões e fugas, conseguiu chegar a Montevidéu, onde ainda encontrou forças para recomeçar a vida, casando-se, e teve três filhos. Incrédulo diante da própria sobrevivência, escreveu: “Sim, sobrevivi e sou livre, mas para quê? Para contar o assassinato de milhões de vítimas inocentes, para dar testemunho de um sangue inocente, derramado por assassinos. Sim, sobrevivi para dar testemunho deste grande abatedouro: Treblinka” (p. 145).

Apesar dos frenéticos esforços para destruir os indícios, não lograram êxito, e as provas do holocausto foram surgindo, apontando as barbaridades cometidas. Entre as provas irrefutáveis estão os depoimentos das próprias vítimas, entre elas a de Chil Rajchman, o sobrevivente. Fatos assim precisam ser sempre lembrados, ainda que dolorosos, para que não se repitam.
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