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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Hércules e Penélope (Simone Pessoa)



A paz de Hércules foi rompida no dia em que Penélope adentrou as dependências da casa. Serelepe, Penélope corria, pulava, puxava o tapete, estancava de rompante e ensaiava os seus primeiros latidos. O rabinho, então, não parava de abanar.

Embora sendo o pai da pequena, Hércules não gostou nada daquele serzinho inquieto, irritante. Ela, ao contrário, sentiu o maior interesse pelo pai: procurava-o sempre, tentava farejá-lo, seguia seus passos, pois seu destino era brincar com a criatura com que mais se identificava. O impasse estava criado: ele não queria acordo, mas ela não lhe dava trégua.

O distanciamento entre as idades de Hércules e Penélope era o grande complicador da aproximação. Um cãozinho de quase nove anos, que corresponde a cerca de 63 anos se humano fosse, quer sossego, contemplação, rotina e já não tem tanto apetite para brincadeiras e estripulias. Ela, por sua vez, um filhote apenas, é toda curiosidade. Quer mais é fazer danações e descobrir as coisas interessantes com que se depara a todo instante. Assim, um sapato, um cadarço, uma meia, um fiapo de pano, um pedaço de papel, uma ponta de colcha de cama, um saco plástico, uma alça qualquer, uma chinela, uma barra de calça, um dedo, um tornozelo, nada passa incólume e tudo converge para seus dentinhos ávidos de experimentação.

Por sua desenvoltura pueril, Penélope desperta enternecimento e graça. Sorrimos de suas irreverências e transgressões. Sua espontaneidade desconcertante conquista espaços que não imaginávamos admitir. Por isso, a casa se transformou com a chegada de Penélope, inevitavelmente, no centro das atenções.

O ‘sexagenário’ Hércules sofre, pois tem que dividir suas conquistas com a espaçosa Penélope. Como ele é lento e não está disposto a brigar por uma migalha de afeto, tento compensá-lo com momentos só dele. Continuo fiel a cumplicidades nossas a que Penélope nunca terá acesso, pelo menos enquanto Hércules viver. A caminhada da manhã, por exemplo, é única e só dele. Nossas conversas também são ímpares e ininteligíveis para ela. Penélope terá que comer muita ração até alcançar a grandeza de Hércules. Porém, que ele não saiba, longe de seu olhar, me deixo levar pelos encantos da maluquinha.

Assim, porta adentro – e afora também – o velho e o novo, o manso e o intrépido, o sutil e o exuberante, o maduro e o precoce, acabam por compartilhar os fluxos de amor pelas mesmas veredas e calhas incertas.

simoneps@fortalnet.com.br
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