Jornal O POVO (10.11.2010)
Fui, sou e serei, para sempre, apenas um sertanejo exilado no litoral. Nada aqui me diz respeito, por aqui tudo é transitório, passageiro... Apenas espero a triste hora do alegre regresso. Aos trinta, por puro esnobismo, comprei gaiola na última linha do oceano. Cuidadosamente de costas pro mar, pra que toda manhã pudesse desdenhar meu asco de pequeno-burguês físico mas nunca mental. De lá pra cá andejo em linha reta rumo aos Inhamuns. Aos quarenta atravessei a fronteira imaginária da 13 de Maio, linha simbólica de todas as Fortalezas. Em sentido contrário aos tolos, tontos suburbanos mentais. Meu voo é de avoante ferida, com tiro de chumbo nas c’roas do rio Acaraú, nas quebradas do Riacho do Gado, por trás da Barra da Oiticica, de lado da Caconha de todos os loucos. Pois em cada quarto de qualquer família pulula um doidinho de testa quadrada, encarnado de sangue da abelha Capuchu... Enquanto o Diabo, rosianamente, redemoinha no terreiro. Gracianamente seco, corre meu sangue pelas veredas pedreguentas do Carão. Do outro braço, o direito, o sangue das tristes Oliveiras, dos tontos bons da Curimatã, do Jumentão da Maravilha. Apenas quando se estende pelas estradas do Canindé, as palavras vão escasseando, até quase sumirem da voz. Água evaporando na língua morna de todos os nós. De marejado apenas os olhos, único órgão úmido do sertanejo que volta. Sou filho, pelos dois lados, da primeira geração que saiu do campo, que desbravou a cidadezinha no pé da Serra das Matas. Não sou filho de matuto urbano, mas de matuto dos matos, de pés rachados na urina do lajedo quente. Meu pássaro é o Camiranga de beira de caminho, comedor de Cassaco e Tejubina de grota. Meu ouvido é de rabeca triste cantada por cego em final de feira. Minha casinha é branca, de parede grossa, quase na sombra de uma Jurema imaginária. Mesmo longe de nosso chão, formamos confrarias de quase surdos-mudos. Apenas olhamos para o nascente a perscrutar chuva. E quando ela vier, é certo que vem, virá sempre, um dia. Já nos encontrará de mãos trêmulas e mala pronta.
* Pedro Salgueiro é cearense de Tamboril. Publicou O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar com Armas (2000), Dos Valores do Inimigo (2005) e Inimigos (2007), todos de contos; além de Fortaleza Voadora (2007), de crônicas.
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Fui, sou e serei, para sempre, apenas um sertanejo exilado no litoral. Nada aqui me diz respeito, por aqui tudo é transitório, passageiro... Apenas espero a triste hora do alegre regresso. Aos trinta, por puro esnobismo, comprei gaiola na última linha do oceano. Cuidadosamente de costas pro mar, pra que toda manhã pudesse desdenhar meu asco de pequeno-burguês físico mas nunca mental. De lá pra cá andejo em linha reta rumo aos Inhamuns. Aos quarenta atravessei a fronteira imaginária da 13 de Maio, linha simbólica de todas as Fortalezas. Em sentido contrário aos tolos, tontos suburbanos mentais. Meu voo é de avoante ferida, com tiro de chumbo nas c’roas do rio Acaraú, nas quebradas do Riacho do Gado, por trás da Barra da Oiticica, de lado da Caconha de todos os loucos. Pois em cada quarto de qualquer família pulula um doidinho de testa quadrada, encarnado de sangue da abelha Capuchu... Enquanto o Diabo, rosianamente, redemoinha no terreiro. Gracianamente seco, corre meu sangue pelas veredas pedreguentas do Carão. Do outro braço, o direito, o sangue das tristes Oliveiras, dos tontos bons da Curimatã, do Jumentão da Maravilha. Apenas quando se estende pelas estradas do Canindé, as palavras vão escasseando, até quase sumirem da voz. Água evaporando na língua morna de todos os nós. De marejado apenas os olhos, único órgão úmido do sertanejo que volta. Sou filho, pelos dois lados, da primeira geração que saiu do campo, que desbravou a cidadezinha no pé da Serra das Matas. Não sou filho de matuto urbano, mas de matuto dos matos, de pés rachados na urina do lajedo quente. Meu pássaro é o Camiranga de beira de caminho, comedor de Cassaco e Tejubina de grota. Meu ouvido é de rabeca triste cantada por cego em final de feira. Minha casinha é branca, de parede grossa, quase na sombra de uma Jurema imaginária. Mesmo longe de nosso chão, formamos confrarias de quase surdos-mudos. Apenas olhamos para o nascente a perscrutar chuva. E quando ela vier, é certo que vem, virá sempre, um dia. Já nos encontrará de mãos trêmulas e mala pronta.
* Pedro Salgueiro é cearense de Tamboril. Publicou O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar com Armas (2000), Dos Valores do Inimigo (2005) e Inimigos (2007), todos de contos; além de Fortaleza Voadora (2007), de crônicas.
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