Eu que não ando só, mas somente em boa companhia, dava fecho à noite de segunda, numa boêmia sem razão de ser, no sempre Assis da Gentilândia, a conversar fiadamente sobre futebol, política e nosso cancioneiro com Vinícius de Morais e o irmão da Ana de Hollanda, ambos pilequeados sob véu cinzento da fumaça de cigarros. Vinícius, flagrando meu constrangedor desinteresse sobre tais coisas externas à alma, vessou o ar e apontou a contenda ao tema de sua predileção: a especialidade no exercício penitente do amar.
Até eu, falso poeta, que nunca fui com as coisas do amor — não sei beber uísque nem tão pouco ganhar dinheiro com poesia e menos ainda credito em amaravilhas — sei que os olhos dos poetas minam de seu peito, daí que os males do coração lhes são o desejo incontrolável de não querer ver o tanto à certeza de que são demais os perigos desta vida.
O Poetinha, feito branco mais preto do Brasil, com as mãos em vagas ociosas à superfície da mesa, entornava a garrafa cor âmbar, num tranquilo discurso de pureza, em nome de viver seu grande amor:
— Quem já passou por essa vida e não viveu, pode ser mais, mas sabe menos do que eu. E mais eu digo: ai de quem não rasga o coração. Viver sem ter amor é não viver, compadre Chico!
— O amor, Vinícius, eu... eu... eu bem sei, já provei, é um veneno medonho. É difícil dizer que foi... que foi... bonito... É muita mentira para mim... — e lançando seu copo ao ar, a rir e a tropeçar no gaguejo das palavras, bradou: Deixem em paz meu coração que ele é um pote até aqui de mágoa!
— O amor só é bom se doer, mas o bom amor dói em paz e a tristeza é a mais bela... Ponha um pouco de amor na sua vida, assim como o faz num samba, pois que a alegria é a melhor coisa que existe, não é mesmo, capitão Raymundo?
Enquanto o Chico dentava uns amendoins torrados e contemplava transverdemente o poetar de um crente, eu, emudecido, na provocação de que para viver um grande amor se é preciso um grande amor para viver, concorria-me às coisas doridas, quase que divinas, ao canto e à beleza das musas-louçãs. Lembrava do último instante, jazido eterno, enquanto esquecia meus olhos na face branca petalada e à constelação brilhante dos olhos da mulher amada. E no videjar de todas as horas, dês o seu raiar até o fenecer que vem com a noite silenciosa e desestrelada, caía em profundos e porquanto insensatos sofreres, a embolar em fundos de armários ou de gavetas, as noites que cria lhe dar. Sem excessos, sem promessas, nem esperanças e por compromisso apenas o descuido do passado e a vida vivida dia por vez. Ah, mar sozinho é o que há de mais triste. Ensaiei uma única fala e, para impressionar, enfeitei-a. Ela vinha, quando o Chico a estorvou:
— Sei não, mas não é legal chorar o leite derramado. Sabe que venho até remoçando, me pego cantando sem mas nem porque? O sujeito para amar tem... tem... tem que tentar entender as mulheres... Mas quantos e tantos são seus mistérios...
— Ora, parceiro, uma mulher tem que ter qualquer coisa que chora, que sinta saudade, que seja só perdão. E daí que ela seja só linda? Quer saber? A vida é uma só e se o amor é fantasia, eu me encontro em pleno carnaval. — levantou-se e experimentou uma desengonçada dancinha requebrosa, imitando samba, ao pé da mesa, sendo aplaudido pelo companheiro a rir-se da marmota.
À beira da alvorada, o bar ia fechar e na loucura de ir à rua beber a tempestade que chega a nossa Fortaleza, se foram, mas antes concretizaram a nossa parceria nessa crônica de poeticidades, afinal, quem bebe com Vinícius tem logo que, facinho, sagrar-se parceiro.
Entretanto, confuso e esquecido de casa, não sei mais se hoje tenho apenas uma pedra no meu peito ou se mesmo o amor que não compensa é melhor do que a solidão, mas, de toda forma, Saravá e, a todo pessoal, adeus!
Alguns dos trechos da crônica foram adaptados da obra de Vinícius de Moraes e Chico Buarque.
*Raymundo Netto que não sabe cantar, não se lembra de uma letra, mas chove no molhado. Contato: raymundo.netto@uol.com.br blogue: http://raymundo-netto.blogspot.com
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