(Foto de cena do filme Lua cambará)
O cinema é uma arte de difícil conceituação. É a mais sutil de todas as formas de expressão da linguagem. Não está codificada em partituras ou em arranjos verbais como a música e a literatura. E não é inanimada como a pintura ou a escultura, que se utilizam de vários artefatos culturais para alcançar a sinergia das formas.
A metáfora do cinema talvez se possa comparar com a lâmina da navalha, para aqui me valer da alusão das marcas do teatro na sensibilidade daqueles que consomem a sua terapia luminosa, como quer o pensamento de Plínio Marcos e Antonin Artaud.
É certo que o cinema precisa muito mais de luz do que o teatro, porque o cinema corta muito mais. Corta, num primeiro plano, o campo da visão de quem o empreende; e corta, em outra dimensão, a lâmina do desejo de quem o assiste e de quem se insere na sua plasticidade, no seu movimento, na sua alteridade absolutamente sancionadora.
Ninguém, absolutamente ninguém sai impune de uma apresentação cinematográfica, pois que além de divertir ou entreter, o cinema penetra na vida interior das pessoas, fundindo o universo dinâmico que exibe com o movimento sistêmico de quem o elege no espaço mais ou menos morto que o circunda.
Querendo-se ou não querendo-se, o cinema é a arte que movimenta o corpo e a mente daqueles que se acercam do seu universo fabuloso. A tecnologia das formas e os efeitos especiais promovidos no campo da visão fazem do cinema a arte por excelência da pós-modernidade, que exige o fragmento e o insight como formas de visibilidade daquilo que se produz no universo da arte.
Estou de acordo com Almodóvar e com Walter Filho quando se valem da estética do corte para se referir ao cinema como se fosse o cânon e a fuga que nos deixam menos imbecilizados.
Invoco a estética e as cores de Almodóvar porque as suas cores são ainda mais transcendentes do que as cores da pintura, e porque Walter Filho quis fazer deste livro uma transposição de resultados: da tela para o desenho gráfico, do campo visual e cinético para o mundo do sentimento e do afeto, no qual guardamos a nossa relação com o texto.
Walter Filho, o autor de Cinema – A Lâmina que Corta (Fortaleza, Edições Poetaria, 2010), é um dos mais inquietos seres humanos que conheço. Profissional do Direito e amante incondicional da Justiça e de todos os seus atributos, é como esteta, no entanto, que ele se revela no seu livro de estréia. Como esteta, repito, e como crítico de cinema também, porque o seu livro é um a recolha de textos e ensaios que abordam o cotidiano do cinema a partir de um ponto de vista pessoal.
Não vou dizer que o autor é apenas um excelente crítico de cinema ou um profissional da atuação cinematográfica, porque Walter Filho é também um free lancer e um voyeur que sabe o arranjo e o improviso do belo, pois que sabe as várias possibilidades de um filme, no campo da estética e da alteridade, e da transformação poética do desejo.
Acho que os leitores deste livro sabem que Walter Filho já atuou como ator e como crítico semanal em jornal de ampla repercussão em Fortaleza. Penso que os leitores deste livro conhecem a sua inquietude, a sua soberana irresignação, a sua busca de valores à margem das falsificações e simulacros em que se enredou a busca da verdade nos tempos modernos.
Cinema – A Lâmina Que Corta não é um livro didático nem pretende ser um livro panorâmico. É assistemático e vai na contramão do discurso, assim como parece ser o estilo de vida do autor. E também não é um livro feito para cinéfilo, como certos manuais que andam por aí à procura de uma aventura com o leitor incauto.
E assim sendo, não me vou lançar na sedução de fazer um resumo ou a apresentação do conteúdo deste conjunto de crônicas e resenhas. Digo tão-somente que o livro é bastante sedutor e cativante e que o autor o escreveu com as tintas da emoção e do afeto.
Não vou exemplificar, complementar ou comentar aquilo que o autor já minutou sobre as suas preferências, não necessariamente volitivas, pois já esclareci que não se trata de um livro didático.
Se me fosse permitido interferir no sumário do livro, eu não fugiria à tentação de invocar para a lista duas películas cinematográficas: Sertão das Memórias, de José Araújo, e Lua Cambará, de Rosemberg Cariry. E no mais pediria ao autor que fizesse, neste seu conjunto de resenhas, uma alusão, mínima que fosse, ao gênio de Akira Kurosauwa, especialmente neste ano de 2010, no qual se comemora o centenário do seu nascimento.
Sei que Walter Filho, mais de uma vez, tentou projetar um olhar crítico sobre os dois monumentos da filmografia cearense, a que me referi no parágrafo anterior, mas sei porque desistiu do projeto: no Sertão das Memórias ele teve participação como ator e assistente de direção, e para Lua Cambará ele resguarda a sua intervenção, tendo em vista o livro que Rosemberg Cariry pretende organizar sobre a recepção desse filme.
No mais, gostaria de chamar a atenção do leitor para o grande destaque dado pelo autor para Marlon Brando, seu ídolo, indiscutivelmente, mais do que confesso. E ídolo do autor deste texto também.
De último, se o leitor desejar encontrar aqui uma orientação de leitura para olhar a história do cinema a partir de um ponto de vista ideológico, eu peço que ele abra este livro colocando todo o preconceito no lixo. Para Walter Filho, cinema não é apenas sinônimo de prazer. É antes um corte que se arma contra a imbecilidade e a grande cegueira que nos torna, a cada dia, mais embrutecidos.
A inquietação de Walter Filho, a sua refinada consciência de intelectual e cidadão, o domínio da linguagem com a qual noticia as suas preferências e o conhecimento da matéria sobre a qual se debruça fazem deste livro um dos repertórios de monta da crítica e da crônica cinematográfica entre nós.
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