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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Vietnã (E o “desfolhante laranja”)

Emanuel Medeiros Vieira


Ah, Porto Alegre, anos 60. Conversávamos na Praça da Matriz: eu, Flávio, Alberto, Edgar, Aydos, Paulo, Sá Brito e outros. O que fazer? Havia a ditadura, cassetetes, mimeógrafo, apostilas. E a notícia de que Glauber e outros artistas haviam sido presos no Rio por protestarem contra a Guerra do Vietnã. Era preciso fazer alguma coisa. Sabíamos o que o Império estava fazendo. Não, mais uma vez não era possível ficar calado, como se nada estivesse acontecendo lá longe, sim, bem longe, do outro lado do mundo. (A luta continuou depois, já na década de 70, em São Paulo e Florianópolis.) A guerra terminou. Acordo assinado em 1975. Mas ela guerra não acaba com o armistício: ficam as sequelas, as viúvas, as muletas, os órfãos, as cidades destruídas. Éramos poucos? Sim. Mas parecíamos muitos. Queríamos mudar o mundo. A gente já escrevia para jornais do centro acadêmico, da faculdade de Direito, de Filosofia. Os verbos eram “ampliar”, “engajar”. Ou: “nossa força é a nossa união, não passarão, polícia também é povo.” (Hoje, quem ler, talvez sorria.) Iríamos “fundar a utopia.” Líamos tudo. Queríamos saber, conhecer, viajar. A livraria do Arnaldo e do Brutus (“Coletânea), no coração da cidade, era ponto de encontro. E vendia a crediário. Andávamos quase sempre “duros”. A livraria, o centro acadêmico, a Praça da Matriz, o “Mateus”, o “Rian”, as casas dos amigos, as repúblicas, os restaurantes universitários, os cines-clube eram os locais agregadores. E havia o Vietnam, para quebrar a nossa cabeça. A turma tem hoje, aproximadamente, 60 anos, 60 e poucos. Enternecer sem perder a dureza... A vida pode ter colocado espaço, distâncias. Vários amigos já estão encantados, tentando decifrar os enigmas da eternidade. Não, não estamos em 1967. Estamos em 2010. Trinta e cinco anos depois do final da guerra e da maior derrota militar dos EUA, os efeitos da dioxina usada no desfolhante laranja continuam a afetar regiões que compreendem áreas do Vietnã, do Laos e do Camboja. Os resíduos se entranharam na terra e nas sementes das plantas , e as pessoas que as consumiram e consomem, transmitiram e transmitem seus efeitos aos descendentes. 35 anos depois! Crianças sem olhos, sem braços, sem ouvidos, como revela Mauro Santayana. Recém-nascidos com os órgãos genitais na face.

Escreve ele: “São milhares de seres humanos e, enquanto viverem e continuarem a nascer, representam o libelo mais ácido contra os piores terroristas: os senhores estadunidenses da guerra.” A história do desfolhante laranja começou na Segunda Guerra Mundial, quando os encarregados das armas químicas sugeriram seu emprego maciço sobre os arrozais japoneses. Mas maiores empresas químicas do EUA, estimuladas pelo Pentágono – tendo à frente a Monsanto (não esqueçamos este nome) e a Dow Chemical passaram a pesquisar os efeitos do agente laranja contra os seres vivos, não só os da deformação genética, como também os da indução ao câncer. Em 1960 passaram a produzir para a guerra. Em 1961, o glorificado presidente Kennedy autorizou o uso do produto no Vietnã. Naquele país, além das crianças deformadas a incidência do câncer no útero é 30 vezes maior do que no resto da Ásia. Os acordos de Genebra proíbem rigorosamente o uso de armas químicas nas batalhas. A morte pode ser um processo técnico lucrativo, observa Mauro. “Não lhes importa a possibilidade de que os transgênicos venham a matar os consumidores ou a condenar as almas das crianças a habitar coros deformados nas próximas gerações. O que importa é o preço das ações, os dividendos aos acionistas, e a elevada remuneração de seus quadros executivos”, arremata.

Porto Alegre. Rapazes de 20 anos. Os inseguros amores, os esperançosos amores. Contos, poesias, curtas-metragens. Meu barro é mnemônico: não esqueço. Eu me lembro: Vietnã. Talvez, o exemplo que conhecemos de maior bravura e de maior coragem de uma gente. Tal luta vale mais que mil teses que falem em autodeterminação dos povos.

(Queria dedicar esta memória a todos os amigos que estiveram juntos naquele “campo de sonhos”, nos anos de Porto Alegre – cidade, também florida, das faculdades tão agitadas, do Guaíba do pôr-do-sol, das ladeiras, do “Rian”, do Cine Rex, do Quintana, do Gastal, do Appel, do Gerd e de tantos outros que, generosamente, nos ensinaram o valor da amizade, do pluralismo e da democracia (sim, que vá o lugar-comum necessário) como valor universal.
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