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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Crônica sem cê (Simone Pessoa)


Tenho apego pela letra de número três do alfabeto. A partir dela posso dar nome às maiores paixões de minha vida. Primeiro vem o meu amado que tem essa extraordinária letra logo na entrada de seu nome. E quem se une pelo matrimônio, quer um lar para viver junto. Não existe lugar onde me sinto mais inteira e abrigada do que em nossa morada. É nessa atmosfera favorável que meu marido e eu revelamos nossas propensões. Eu tendo para o lado esquerdo e ele para o direito, sobretudo na hora de deitar. Mas, a gente sempre se topa no meio... Sem falar nas questões de poder. Mas essa é outra história.

A leitura e a expressão textual são meus outros quereres – já amplamente manifestados noutros momentos –, que teriam sido gravemente diminuídos não fosse aquela letra tão versátil. Ela dá o tom, a pintura, os matizes. É pura vitamina que nutre e garante vigor ao texto.

Imagine a falta de glamour ao se dizer, por exemplo, quando morrer eu quero ir para o firmamento. Ou: o tempo está ótimo, firmamento de brigadeiro. Ou ainda: pequeno mamífero que ladra não morde. Jesus Inri!

E em matéria de alimentos? Inadmissível levantar de manhãzinha e não tomar aquela saborosa bebida quente, pretinha, que nos anima para enfrentar o dia. Aliás, para mim não existe oportunidade melhor de sentar à mesa do que o desjejum sem ressalvas, envolvendo frutas, pão, queijo, manteiga, torrada, leite. Sou também um tanto apaixonada por Diamante Negro, Alpino e Batom. Sei de amigas que preferem um Sonho de Valsa, enquanto os entendidos dizem que os belgas são os melhores do mundo.

Já o manjar dos deuses, aquela bebida paraense roxa a que me referi em outras passagens, também utiliza a letra faltante apensada por um rabinho para dar o som de “s”. Enquanto isso, eu posso soletrar os fonemas do manjar dessa forma: as-sa-í.

Veja, leitor, estão se esgotando minhas possibilidades de negar algo por demais presente nas entrelinhas. Resta-me apelar por subterfúgios que tendem a deteriorar as ideias. Não só por isso, mas, provavelmente, esta página não se findou tão fértil pela falta daquela letrinha que serve de elo para tantas outras.

Mas, o título é preventivo: um texto sem pretensão de ser.

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