Dos estudos sobre João Cabral de Melo Neto é lícito asseverar que por baixo da sua ponte poética muitas águas já passaram e, nada há que indique alguma corrente contrária, muita água ainda passará, embora, para permanecer na figura de linguagem, águas cada vez mais rasas à medida que se afastam do seu nascedouro − leia-se, aquela meia dúzia de publicações seminais que deslindaram quase que in totum a poética do poeta pernambucano − dessa forma mais contribuindo para a extensão do que para a profundidade das análises. Entenda-se: é que João Cabral de Melo Neto valendo sozinho por toda uma escola literária − o que, em princípio, poder-se-ia dizer tratar-se de uma fonte de estudos quase inesgotável – teve a peculiaridade de escrever, em versos, um tratado de poética, da sua poética, no íntimo de muitos de seus poemas, deixando para seus exegetas, sobretudo, o trabalho de mapear, em sua obra, a concepção de linguagem poética inescapável à sua personalidade e, por extensão, as ferramentas estilísticas de que se valia para construir a sua poesia.
Grosso modo, em correspondência as duas águas da poesia cabralina, haveria também duas águas, aqui mutuamente dependentes, de estudos cabralinos: de um lado, os “estudos biográficos”, dos quais o clássico de José Castello (João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma) inscreve-se como paradigma; e do outro, os “estudos de poética”, e, dentre esses, principalmente, os de José Guilherme Merquior (A razão do poema), Luiz Costa Lima (Lira e Antilira), Benedito Nunes (João Cabral de Melo Neto), Lauro Escorel (A pedra e o rio), João Alexandre Barbosa (a imitação da forma) e Antônio Carlos Secchin (João Cabral: a poesia do menos). Assim, é dentro dessas coordenadas que se deve situar os novos estudos sobre a poesia de João Cabral de Melo Neto e, mais especificamente, o de Solange Rebuzzi (O idioma pedra de João Cabral. São Paulo: Perspectiva, 2010).
Diga-se desde já que, longe de classificar-se entre as meras obras de fancaria ou produto de moda literária, é, não obstante, livro que se lê sem os grandes sobressaltos espirituais advindos do encontro com o ensaio percuciente e desbravador, dessa forma distanciando-se do que poderíamos chamar de “cânone dos estudos cabralinos”, fato que, de qualquer modo, não desqualifica o trabalho sério empreendido, sobretudo se se leva em consideração as dificuldades “impostas” por João Cabral a seus estudiosos, sendo, substancialmente, um “poeta-crítico-da-própria-obra”.
Ainda assim, sobressaem-se, notadamente, as preocupações didáticas que permeiam grande parte do livro de Solange Rebuzzi, seja no pormenor explicativo, e por vezes dispensável, na análise de algum poema, “As irmãs Bernarda e Fernanda de Utrera são personagens do poema e grandes lendas do cante flamengo, cantavam em Sevilha desde 1995”; seja na nota apenas pitoresca, desnecessária, “O poeta (Francis Ponge) faz referência a um tempo de férias, em que viveu nas montanhas do mediterrâneo com a mulher Odette”; seja no comentário supérfluo sobre as vicissitudes da vida literária, “O fato causa algum estranhamento ao leitor” (o fato de João Cabral ter tomado a iniciativa de publicar, com recursos financeiros seus, o próprio livro), mas, continua, “mas não de todo, pois é sabida a luta que os poetas travam para conseguir publicar seus primeiros livros”; seja nos não-raros momentos em que a sua visão da obra de João Cabral é, em larga medida, o mero resumo de suas leituras ensaísticas: “Os críticos concordam com o âmbito construtivo e visual da obra cabralina. Mas, em relação à lírica, percebemos que eles utilizam formas diferentes de referi-la. Luiz Costa Lima fala sobre uma “antilírica”, João Alexandre Barbosa reconhece um “lirismo de tensões” e Alfredo Bosi encontra em João Cabral “uma nova dimensão do discurso lírico”. A ensaísta Marta Peixoto...”.
Nesse sentido, é verdadeiramente um lenitivo encontrar algumas ponderações que procuram expor a “tese” da autora, sobretudo em dois momentos: na análise que faz das motivações da escrita de João Cabral sob a égide de algumas leituras de Maurice Blanchot e, também, no enlace que procura fixar entre as poéticas cabralina e a do poeta francês Francis Ponge, por meio da esmerada argumentação que desenvolve no capítulo “A materialidade da escrita de João Cabral e algumas aproximações com a poética de Francis Ponge”, esse último enfoque apenas de modo incipiente abordado em um estudo prévio de Benedito Nunes. Aproximação que Solange Rebuzzi também procura estabelecer, mas aqui forçadamente, entre João Cabral e outro poeta do Recife: “Com os elementos bandeirianos, como os dos versos ‘homens feito bichos’, e a forma do poema epistolar, que se parece a um relato de carta e desdobra ‘discurso e percurso’, a influência de Bandeira se faz notar” (Grifo meu).
Bem entendido, se a autora corrobora a idéia de outra ensaísta de que há “um diálogo direto de Cabral com certos textos de Bandeira” (pág. 52, citação de F. Sussekind, “A voz e a série”), o que não é isento de alguma contestação; a partir daí, empregar-se a palavra “influência” do segundo poeta sobre primeiro é um salto demasiadamente largo. É que outra forma de referir-se ao “poema que se parece a um relato de carta” é meramente dizer tratar-se de um poema eivado de discurso prosaico, característica já sobejamente evidenciada como partícipe das poesias de João Cabral e Manuel Bandeira. Entretanto, e eis aqui o ponto nodal, a “estrutura da prosa” na qual se molda parte da poesia do autor de “Libertinagem” é, fundamentalmente, diferente daquela que emoldura a poesia de João Cabral de Melo Neto.
De fato, os “poemas prosaicos” de Manuel Bandeira caracterizam-se, em larga medida, por uma sintaxe verdadeiramente prosaica, não sendo poucos os seus poemas em que não comparece uma única metáfora ou símile; o que não excluiu que, em muitas dessas peças, ele tenha conseguido escapar do simples prosaísmo, quando o sentido total do poema ultrapassava a mera descrição linear ou, de modo sintético, quando o poema produzia uma epifania. Por outro lado, a “prosa da poesia cabralina” é prosa apenas no sentido em que o poeta de “Morte e Vida Severina” tratava muito de seus temas no seio de uma linguagem lógico-discursiva típica de textos escritos em linguagem prosaica. Ocorre que a sintaxe cabralina é, por oposição à de Bandeira, caracterizada por uma carga figurativa que, por extensão, torna a “semântica” de seus poemas mais próxima do universo da poesia do que do universo da prosa. Nesse sentido, pode-se asseverar que João Cabral construía os seus poemas por meio de uma abordagem singular que combinava a lógica do discurso da prosa, como molde, e a analogia do discurso poético, como estofo. Dessa forma (e por motivos que não se esgotam nesses argumentos) como argutamente observou Benedito Nunes, João Cabral é, congenitamente, um “anti-Bandeira” por excelência.
Como ressalvas menores a esse “O idioma pedra de João Cabral”, não alterando, assim, o valor do conteúdo central do estudo, é preciso ainda considerar dois pontos: em primeiro lugar, equivoca-se Solange Rebuzzi quando qualifica como versos livres os do poema “Pernambuco em mapa”: “Só vai na horizontal/nos mapas em que o mutilaram;/em tudo é vertical:/dos sobrados e bueiros da Mata//até o mandacaru/que dá a vitalícia banana/a todos que do Sul/olham-no do alto da mandância”. De fato, aqui o que se tem são versos polimétricos: “Pernambuco em mapa” é um poema constituído por três quadras, cada uma delas formada por dois versos hexassilábicos, um verso octassilábico e um eneassílabo, com o seguinte esquema métrico dentro da estrofe: 6/8/6/9. É que esse tipo de arranjo métrico não raramente engana mesmo aqueles que têm conhecimento sobre teoria da versificação. A metrificação cuidadosa, associada à análise do ritmo e da semântica de cada verso, revela a verdadeira estrutura desse poema cabralino, confeccionado dentro dos padrões clássicos do verso medido, e, definitivamente, não em versos livres.
Em segundo lugar, há alguns poucos descuidos na redação do livro, nada que uma próxima edição não possa facilmente sanar, como: “Roberto Vecchi comenta, as visões poéticas de Recife em Bandeira e João Cabral”; ou “Nesse ponto, consideramos a ‘pedra’ como que, comportando em seu peso as muitas outras poéticas que lhe habitam.”; ou ainda, “Maurice Blanchot desvenda o seu désouevrement, buscando, nas páginas escritas, compor um cenário vazio de verdade e certezas”.
Tudo bem considerado, “O idioma pedra de João Cabral” faz parte, para retornar à imagem inicial, das águas mais recentes a passar sob a ponte cabralina, configurando-se, na mesma medida, como um livro proveitoso e não-indispensável. Não obstante isso, Solange Rebuzzi inscreve, desde já, o seu nome no rol dos destemidos ensaístas que buscaram melhor compreender esse espécime único da poesia universal que é João Cabral de Melo Neto.
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*Publicado em Linguagem Viva (Ano XXI, N 257, janeiro 2011, pág 1)
**Daniel Mazza (Fortaleza, 1975). Autor de Fim de Tarde (2004) e A Cruz e a Forca (2007).
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