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domingo, 27 de fevereiro de 2011

A reconvença (Enéas Arthanázio)





Pois então o patrão me chamou pra móde um particular no escritório da Fazenda. Caboclo meio xucro, nascido e criado no guachivo, entrei um tanto encabulado naquela sala do chão liso da cera aonde ele só proseava com grandões de negócio ou de eleição. Elísio Leite Preto, por apelido Nhô Pré, dono e senhor da “Primavera”, o maior fazendão daquelas bandas, estava sentado numa cadeira estofada, atrás da mesa grandota, e tinha um jeito preocupado. Em cima da mesa descansavam o revólver WS.38, niquelado e com cabo de madrepérola, e o rabo-de-tatu de couro reforçado que ele carregava, batendo nos canos da bota quando se incomodava. O cabelo já branqueava dos lados, por riba das orelhas, mas a feição morena, tostada do sol, se mostrava lisa e firme. Sojeito rico e rijo, Nhô Pré sempre foi cainho de prosa e o chamado dele me deixou encasquetado, excogitando sobre o que havéra de ser. Entrei ressabiado e com medo de escorregar no liso daquele chão. Mesmo sendo o capataz, homem de fiança, pouco tinha pisado naquele lugar. Assim que entrei ele mandou fechar a porta e apontou uma cadeira.

– Buenas, patrão! – disse eu, tirando o chapéu de aba larga.

– Buenas! – ripostou ele com a fala firme que eu conhecia desde guri. – Aristides, - ele contou, - passei dois dias na cidade e escutei por lá umas conversas que não me agradaram. Costurando prosas de um e de outro, entendi que estão preparando um mal feito pro compadre meu Jardelino Procópio. Coisa de violência, espera, incêndio, não sei bem, mas coisa séria, intriga de política. – Fez uma parada, enrolou o palheiro e acendeu, puxou uma tragada funda, a fumaça azul subindo na réstia do sol que varava pela vidraça. – E meu compadre Jardo está no paiol, lidando com as roças, lá nas terras do Entre-Rios. Ele não sabe de nada, é sojeito de ser pegado de sopetão, sem tempo de armar defesa. Por isso mandei le chamar: você tem que levar prele uma reconvença, avisando. Isso tem que ser feito na moita porque podem ter bombeiros vigiando. Você carece de viajar pelo meio, nunca pela estrada, porque, se desconfiarem, vão le atacar. Aperpare suas coisas, saia amanhã antes do clarear do dia. Pode ir no meu burro preto que tem os cascos finos, é firme no barro e nos lançantes, um animal reforçado pra tirão longo. Você vai enfrentar chão brabo. Veja que são quinze léguas!

Saindo dali, entreparei na área da frente e senti o peso da empreita que recebi. Pra chegar no Entre-Rios, por dentro, saía lhêfo! Estiquei os olhos pela campanha na minha frente e avistei lá longe, quase na linha do céu, o começo da mataria. Era por lá o travessão. Mato inceiro, inçado, chão de pedra, banhado atolador e até tremedal, bichos de porte e, se duvidar, algum bugre alçado. Picada de pouco uso, já meio apagada, sujeita a erradas. Mas, cabra de fiança, eu não podia refugar e tratei de me apreparar. Fui inté a cozinha-de-chão onde as crias da casa estavam na lida das panelas, tudo debaixo da autoridade de Siá Barbina, a mais antiga. Expliquei que ia nas lonjuras pro patrão e pedi que organizasse uma matula reforçada. Pão de milho, charque, umas linguiças secas, farinha, um tanto de feijão preto, sal, pó de café, um queijo pequeno e umas rapaduras. A mulher velha, sempre sisuda e áspra, deu as ordens e logo tudo foi se ajuntando em riba da mesa grande. Enquanto isso, fui inté o galpão e mandei repontar o burro preto e uma égua de carga pro piquete. Separei o arreio de mais conforto, a courama e os pelegos; escolhi uma cangalha pequena, daquelas pra pouco peso, e duas bruacas leves. Enrolei a capa lageana, examinei o revólver, a Winchester, a munição e o facão paraguaio bem afiado. Separei um pouco de milho debulhado pros animais e não esqueci de reforçar o trato do cachorro da estima que ia comigo –o Jasper. Aduvinhando aventura, ele não me largou mais e ficou me arrodeando.

Dormi bem no friozinho da noite. No dia seguinte me mexi cedo. O próprio patrão foi me ver de partida e acompanhou os aperparos, aprovando.

– Não carece atropelar os animais – disse ele. – Vá com coragem e num tranco firme. Deus le acompanhe! – arrematou quando montei no burro preto.

E foi assim que parti naquele madrugadão. Um vento fino e frio corria solto na campanha mas o dia prometia ser bonito. A barra do céu dava mostrinha do encarnado do sol que vinha nascendo de mansinho. Senti debaixo das pernas a musculatura da montaria reforçada e segura do burro preto, cabrestiei a égua cargueira e assobiei pro Jasper. Fiz um gesto de adeus pros que ficavam e dei o primeiro passo. É com ele que tem começo qualquer caminhada, mesmo as de tirão perlongado.

Não tardei a chegar na porteira do piquete, aonde fiz a primeira apeada. As varas rangeram nas tronqueiras dum jeito esquisito no silêncio da hora. Depois, em trote contínuo, varei a invernada grande e em seguida a invernada dos bois da engorda. Só se ouvia o geme-geme das bruacas e o chap! chap! dos cascos na terra orvalhada. Ali terminava o chão da “Primavera”, as coxilhas e canhadas dos campos de Nhô Pré, tudo conhecido e limpo, com os carreadores fundos e bem marcados.

Agora eu entrava em terra pouco conhecida e o chão pegou a demudar. O terreno foi ficando mais dobrado, um mato ralo principiava a despontar, caraguatá espinhento e montes de cupim semeavam a terra. Fazendeiro relaxado, aquele! – excogitei. – Nas terras do Nhô Pré aquilo não se criava, ele mandava podar a facão o caraguatá na floração, assim de enviesado, pra não brotar mais, e desmanchar os montinhos de cupim, enchendo os buracos de salmoura. Homem caprichoso, o meu patrão, e um pai pros que trabalhavam na Fazenda.

O burro trotiava firme e a égua acompanhava no range-range da cangalha. O Jasper entrava nas moitas, farejava, voltava pra perto. E o meu pensamento voava na frente, livre, imaginando que mau plano aperparavam pro Siô Jardo, compadre da estima do patrão. Gente maleva aquela, querendo prejudicar um homem bom! Mas hai gente pra tudo!

Alguma perdiz levantava assustada e os quero-queros gritavam com raiva. Mas quem manda se aninharem no chão! Algum gado feio e magruço, – garraios guampudos e peludos, – pastava um capim ralo e amarelento. O sol despontou forte e o céu azul se abriu por riba de mim. Era dia feito quando principiei a entrar na mataria fechada.

No começo afundei num mato limpo. Pinhal antigo, de árvores altas e grossas, imbuias, canelas, erveiras de folhas verdes. Por ali avancei sem problema, avistando sinais de outros viajeiros. Depois, pouco a pouco, o mato foi ficando sujo, feio, escuro. Mataria baixa, trançada, espinhenta, fechada. Tive que encurtar o passo, desviando pra cá e pra lá, andando enviesado. Em alguns lugares as bruacas enroscavam nos galhos; em outros tive que apear e abrir picada a golpes de facão. Aí ficavam os tocos pontudos, perigando estropiar os cascos dos animais. Mas o burro e a égua eram mundiados, sabiam desviar dos estrepes. E fui avançando, avançando, enquanto o calor aumentava, os mosquitos atacavam e as butucas insistiam em sentar nas orelhas dos animais, com sede de sangue. Os pobres sacudiam com força as orelhas para se livrar das mordidas. Êta bicho incomodativo, a butuca!

Beirava o meio-dia quando cheguei num rio. Tinha a água escura e o fundo parecia de barro preto. Nas beiras cresciam viçosas manchas de guamirim, os galhos tramados e as raízes parecendo rede de tão trançadas. Passarada graúda piava por perto. Procurei um vau, pra cima e pra baixo, até que avistei o lugar que tinha jeito de seguro. Embiquei por ele e tanto o burro como a égua obedeceram fácil, sinal de que não sentiram perigo. Entrei na água, o chão se mostrou firme. Os animais beberam com gosto e o Jasper se refrescou num banho ligeiro e saiu se sacudindo para se livrar da água que ficou nos pelos.

Andei mais um tanto, até que peguei a sentir um vazio na boca do estômago. Estava com fome. Num lugar mais aberto fiz um sesteio. Dei um descanso aos animais, deixei que pastassem, e enfrentei a matula de Siá Barbina. Também o Jasper ganhou algum de-comer. Estiquei as pernas, caminhando um pouco, e tratei de viajar que era longo o tirão!

Fiz uma vistoria nos arreios e bruacas, reapertei a cincha da égua, e montei decidido. Andei e andei. Cruzei matos empinados e abertos por baixo, mataria fechada, tramada de caratuva, campinas cobertas de vassoural e até alguns pedaços de campo aberto, com canhadas e coxilhas, mas de capim grosso e amarelento. O sol fez a meia volta no céu e já se escondia na barra do horizonte quando decidi acampar. Numa campina estreita, perto dum arroio de água clara, me ajustei pra pousada. Desencilhei os animais, amilhei cada um deles e apliquei as maneias. A égua cargueira tinha manchas de suor nas virilhas; o burro preto não mostrava o menor sinal de abombar. Bicho forte, aquele!

Acendi um fogo, tostei uma linguiça e aperparei um café de tropeiro na chicolateira. Comi e bebi bem, depois ajeitei a cama em baixo duma árvore folhuda. O arreio de trabesseiro, os pelegos de colchão, a capa lageana de coberta. Deitei e fiquei olhando as estrelas que principiavam a pinicar no céu limpo. O pensamento correu mundo, solto e livre, desde as lembranças de guri até os dias de agora. Pensei no meu futuro, se Nhô Pré faltasse num repente ou me despedisse. Mas eu já tinha um capital regular – cabeças de gado, cavalos, cabritos e ovelhas, umas economias de dinheiro. Dava pra comprar uma terrinha e começar vida de proprietário remediado.

Botei cuidado nas buias que vinham do mato. Muito bicho é da noite, tatus, tamanduás, jaguatiricas, iraras, cachorros-do-mato. A sundaia agourenta também faz suas avoadas ligeiras. Inté espíritos, visagens e assombrações o povo diz que surgem na escuridão. Mas nunca tive medo e nunca vi. Assombração sabe pra quem aparece!

Na beira do córrego, uns guinchos indicavam que tatetos vinham beber. Estralos dentro do mato e barulhos abafados mostravam movimento naqueles ínvios. Mas, com o fogo aceso, nada chegaria. O Jasper, deitado nos meus pés, estava atento, os animais pastavam, o arroio marulhava e o fogo alumiava. Nem um ventinho bulia com a mataria. Tudo em paz, dormi contemplando o céu estrelado.

Acordei com a estrela d’alva ainda acesa no céu limpo. A passarada fazia uma festa nas copadas. Lavei o rosto na água fria do córrego, tomei um café de duas mãos e tratei de tudo aperparar pro segundo estirão. Enquanto me organizava, lembrei que estava no ponto mais isolado da viagem, solitário como nunca, sem uma pessoa numa grande distância. Meu coração se apertou dentro do peito e, se não senti medo, foi pelo menos um pensamento ruim. A solidão não é boa companheira.

Andei um tempão dentro dum mato muito sujo, Numa altura o chão ficou preto e úmido, um barral esquisito e grudento, liso que nem sabão. Encurtei as rédeas e o burro entendeu o meu recado, pisando com cuidado em passos miúdos pra móde não escorregar. Um resbalada ali podia resultar num pranchaço sério. Lá pelas tantas senti o animal se retesar, empinou as orelhas compridas e meio passarinhou como querendo refugar o caminho. Aqui tem coisa – cismei, - segurando a Winchester bem firme. Não demorou e vi no chão uns sinais pouco comuns mas que eu conhecia bem de outros lugares. Pois eram pegadas de onça, bem vivas, ainda frescas. Uma pintada tinha cruzado por ali e não fazia muito tempo, pela madrugadinha, talvez. Fui passando, fui passando. Senti que o burro relaxou; o perigo tinha passado.

A mataria ia ficando cada vez mais fechada. Tinha inço de tudo que era jeito. Várias vezes tive que apear e abrir picada de facão em punho. Tive dúvida sobre a direção mas tomei tento de que o córrego corria no mesmo rumo; não tinha como errar. O chão foi ficando pintado de pedras, umas pedras pretas, roliças e soltas, um sofrimento pra marcha dos animais. Depois, assim meio de repente, o chão foi dobrando, lançantes e subidas, uma encadeada na outra. Depois que venci um cerro forte, avistei na minha frente a copada das árvores lá embaixo. O lançante ficava tão empinado que julguei impossível descer. Percurei lugar mais favorável, pra lá e pra cá, e não encontrei. Só avistei um ponto que parecia picada velha, ainda meio aberta, que nem túnel no meio do mato. Hai de ser por aqui – pensei. Apertei os calcanhares na barriga do burro preto, firmei o cabresto da égua cargueira, e principiei a descer. Meio de lado pra não escorregar, os animais foram descendo devagar. Às vezes as patas deslizavam, a traseira deles encostava no chão, como que descendo sentados. E assim, meio atravessados, deslizando, afirmando, escorregando, descemos até o fundo dum perau que parecia sem fim - um forge. Em baixo, num chatão escuro, dei um descanso pros animais e escutei a buia duma cachoeira: o riacho despencava daquele lançante empinado como um véu d’água. Compus os arreios e a cangalha que correram pra frente na descida.

Andei e andei, sempre num mato sujo, inçado e pedrento. Lá pelas tantas cheguei na boca do lugar conhecido por Travessão dos Bugres. Por um lado o taimbé descia quase em pé até o mesmo córrego da cachoeira, agora mais crescido, que corria lá embaixo. A altura assustava; cair ali era morte certa, era adeus tia chica. Pelo outro lado, subindo reto pro céu, um paredão de pedra lisa e úmida que se perdia nas alturas. No meio, bem estreito e com o chão pendente para o taimbé, a trilha aonde tinha que passar. Entendi na hora o porquê do nome: naquele ponto os caingangues atacavam com lanças e flechadas. Embiquei por ali sem tempo de ter medo; não tinha volta. Firmei as rédeas e principiei a travessia. Passo a passo. O burro tratava de andar bem rente ao paredão, o mais longe que desse do taimbé, forçando a égua a acompanhar. Animal inteligente, e ainda chamam de burro! De vez em quando uma pedra rolava, descambava pelo taimbé, caía lá embaixo num barulhão do dianho. Fomos cruzando, devagar e sempre, o burro preto, a égua, o Jasper, uma fileira quieta, ninguém se arriscando a fazer barulho. Até que enfim, cansados de tanta tensão, saímos do outro lado! Oigalê empreita braba o patrão me deu!

Com as traseiras e as patas embarradas, os animais pareciam feios e cansados. Mas eu tinha que seguir até dar por terminada a missão. Apressei o passo, agora em terreno mais favorável. Árvores altas e grossas indicavam terra boa e não tardei a alcançar uma campina redonda de capim liso e verde, lugar próprio pra um sesteio. Apeei, dei descanso ao burro e à égua para pastarem um pouco, comi alguma coisa e dei trato ao Jasper. O guapeca mostrava cansaço, tinha a língua de fora, mas comeu e bebeu. Estiquei as pernas, caminhando por ali, e entendi que o cerro forte onde começava a descida era o divisor das águas. O córrego, agora virado em rio, não podia correr longe dali.

Mas eu tinha que continuar. Dei uma vistoria geral e montei para o que esperava fosse o derradeiro tirão. Entrei numa mataria alta, pintada de pinheiros, com o chão limpo e coberto de capim ralo. Gralhas azuis faziam festa nas copadas e um bando de tirivas cruzou o céu com seu gritedo agudo. Nosso tranco ficou regular e o chap! chap! das patas se misturava ao range-range da cangalha. O mato, pouco a pouco, foi raleando e avistei umas plantações, os quadrados de cores variadas se estendendo uns atrás dos outros, subindo e descendo pela morraria suave. Estava numa zona colonial e avistei lá longe uns ranchos e paióis de fazendeiros que ali mantinham os roçados. Não custaria muito a chegar nas terras do Siô Jardo e passar a reconvença do patrão prele se aprevinir daquela gente traiçoeira e ordinária.

Uma ventania forte caiu num repente e o céu se escureceu ameaçando tormenta. Chegou a pingar um pouco, uns pingos ralos, daqueles de molhar bobo. Mas as nuvens correram no rumo norte e o céu limpou. Ficou no ameaço, vê congestão de pipoca.

Trotiei e trotiei. Subi e desci, varei um riacho, beiradiei um banhadal muito feio. De um lado o chão descambava pra caixa do rio que corria lá embaixo, aquele mesmo arroio que eu tinha seguido e que agora virou rio de verdade. Do outro lado, mais pra longe, o chão descia empinado por um taimbé medonho. Lá no fundo corria o rio grande, aquele que dividia os Estados. Eu estava, afinal, bem no meio do Entre-Rios.

Peguei a avistar chão conhecido. Mais um tanto e chegaria no paiol de Siô Jardo. Senti um alívio bom no peito; nada como dar por bem feito algum serviço de percisão.

Principiei a subir o derradeiro morro. No outro lado ficava o meu destino. Na volta, sem pressa, eu podia viajar pela estrada, não carecia de segredo. Fui vencendo o morro passo a passo, os animais estavam cansados, mereciam ser poupados. Cheguei, afinal, bem no tope do morro e estiquei a vista nos terrenos de Siô Jardo. Mas nem pude acreditar! Na baixada só existia um negrume muito grande de cinza e carvão. Paiol, cercados, chiqueiros, plantações, tudo estava torrado pelo fogo. Não sobrou nada de nada. Algum pijuco seco ainda soltava fumaça e inté as árvores mais altas estavam sapecadas.

Meu coração se apertou e senti vontade de gritar contra os amaldiçoados que praticaram aquela judiação. Jardelino Procópio, homem bom e sério, foi pegado de surpresa e fiquei cismando sobre o que tinha acontecido. Naquele lugar isolado, desprevenido, ele não podia fazer nada. Nem carecia ver pra adivinhar a mortandade.

A reconvença de Nhô Pré não adiantou.

Cheguei tarde demais.
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