I
Quem quiser entender a literatura espanhola de hoje, marcada por Enrique Vila-Matas, Javier Marías e Eduardo Mendoza, precisa primeiro conhecer a literatura espanhola dos séculos XVI e XVII, não só aquela praticada por Miguel de Cervantes (1547-1616), autor de Dom Quixote, mas por poetas maneiristas como Luis de Góngora y Argote (1561-1627), que abriram caminho para as experimentações que redundaram no romance espanhol moderno. Mas esse caminho nunca será completo se o leitor não (re)descobrir Lazarillo de Tormes (1554), romance de autor anônimo, que, de fato, lançou as bases desse gênero.
Antes, porém, de se aventurar a ler esses autores, o estudante fará bom caminho – que, como diria Antonio Machado (1875-1939), faz-se ao andar – se começar por Leituras de Literatura Espanhola (da Idade Média ao século XVII), do professor Mario Miguel González (São Paulo, Letraviva, 2010), que reúne 21 textos que analisam como se comportaram esses antecessores da vanguarda literária hispânica, abarcando desde a poesia lírica medieval, a prosa medieval, o Amadis de Gaula e as novelas de cavalaria, a poesia de frei Juan de la Cruz (1542-1591), Lope de Vega (1562-1635) e o teatro nacional espanhol, Tirso de Molina (1571?-1648) e a criação de Don Juan, o barroco espanhol, até o romance picaresco que não se esgota no Lazarillo de Tormes, mas prossegue em Guzmán de Alfarache, de Mateo Aleman (1547-1615?), e El Buscón, de Francisco de Quevedo (1580-1645).
Sem entender basicamente o ciclo do romance picaresco, não se poderá entender nunca o romance espanhol de hoje, que, embora os críticos espanhóis prefiram não admitir isto, estava, por volta dos anos 60 do século passado, se não morto, ao menos numa fase de transição. Foi quando chegaram a Barcelona os escritores latino-americanos que haviam sido escorraçados de seus países pelos militares que à época funcionavam como títeres dos governos que se sucediam em Washington.
A esse tempo, havia um vácuo entre as gerações de escritores: até porque a maioria, em razão da Guerra Civil (1936-1939), teve de seguir para o exílio. E, assim, a literatura espanhola perdeu continuidade. Latino-americanos como Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), José Donoso (1924-1996) e Julio Cortázar (1914-1984) – que morava em Paris, mas viajava com freqüência para Barcelona – vieram a ocupar esse vácuo, mostrando-se melhores do que os escritores espanhóis daquela época. Exibiam um castelhano mais vivo, enquanto o idioma dos autóctones parecia moribundo. Houve, então, uma reação, pois os espanhóis, achando-se os donos da língua, não podiam admitir aquilo pacificamente.
II
Para fazer essa “ponte” entre o antigo e o moderno, esses escritores espanhóis “descobriram” um personagem que caía à medida: o pícaro, que estabelecia essa ligação com a modernidade, pois, de fato, o Lazarillo de Tormes, gênese desse tipo de romance, é o primeiro a transgredir certas regras, como a de colocar o pobre como personagem principal de uma aventura, indo ainda mais além do Dom Quixote, de Cervantes, considerado o primeiro romance verdadeiramente transgressor.
É verdade que Dom Quixote, se ridiculariza as novelas de cavalaria, mostrando-as como um gênero que chegara a um estágio de exaustão e degradação, tal a repetição da fórmula que as fundamentava, o Lazarillo de Tormes seria um cavaleiro tão desprestigiado que já havia até perdido o seu cavalo e todo o idealismo, integrando-se no dia a dia das cidades espanholas que mal saíam do feudalismo. Por esse lado, o pícaro, esse cavaleiro que perdera seu cavalo, para sobreviver, aceitaria passar por uma série de circunstâncias pouco dignas, como até mesmo a de posar como marido da amante de seu amo.
Com um pouco de influência da literatura inglesa, da literatura francesa e do romance policial norte-americano, a chamada “novela negra”, a moderna literatura espanhola incorporou um tanto da atitude ácrata que marca a maioria dos personagens desse gênero literário, ou seja, um personagem que está sempre fora da sociedade, assim como Candide, de Voltaire (1694-1778), ou Estragon, de Esperando Godot, de Samuel Beckett (1906-1989). Esse é o pícaro, um “vírus” que percorre um organismo – no caso, a sociedade – sem a ele pertencer, um marginalizado a quem ninguém dá ouvidos, mas que conhece a verdade porque está de fora e a vê – até porque quem vê de fora vê melhor.
Os pícaros são homens que se movem numa sociedade perfeitamente organizada e que não são absolutamente nada, não representam nada, não estão vinculados a nenhuma facção política nem têm ideologia ou ideais, movem-se apenas por seus mais mesquinhos interesses. Na sociedade espanhola dos séculos XVI e XVII, perfeitamente organizada, com a igreja, o exército, a nobreza, os comerciantes, os banqueiros e a escumalha, todos em seus devidos lugares, esse “micróbio”, o pícaro, às vezes é rico, às vezes é pobre, às vezes é o lacaio de um ricaço, que tem entrada em todas as casas, mas não tem identidade própria. Astuto, sabe como se mover, como um perro callejero (um cão vira-latas), sabe onde buscar comida e sobrevivência.
Nas sociedades autoritárias de hoje, que funcionam à perfeição até que se desmoronam – vejam o recente fim do regime de Mubarak no Egito –, o pícaro pode ser até um jornalista que, ainda que mal remunerado, tem entrada na casa do senador, do barão da indústria, do banqueiro. Ou comparece ao escritório ou à mansão do governante, do parlamentar, do grande narcotraficante – que, nos dias de hoje, podem ser a mesma pessoa –, acompanhado pelo dono ou pelo diretor do grande jornal, como Lazarillo fazia quando acompanhava seu amo ao visitar algum mandão da época.
Nos dias que correm, esse pícaro pode constituir também o vírus da liberdade, pois debilita os regimes de força – que são sempre regimes corruptos – por sua ação demolidora através da Internet, das redes sociais. Não esqueçamos que um regime de força também pode ter congresso aberto e promover eleições periodicamente. A diferença é que a oposição, geralmente, é controlada na base da corrupção e as eleições manipuladas pelo grande capital que a tudo e a todos corrompe.
III
Para conhecer esse personagem do século XVI que ainda pode ser flagrado na sociedade do século XXI, a leitura do ensaio “Lazarillo de Tormes”, de Mario Miguel González, é fundamental, pois mostra que os romances picarescos têm sempre um forte sentido de sátira social. “No caso dos romances picarescos espanhóis clássicos, a sátira aponta para os mecanismos de ascensão social válidos numa sociedade que rejeitava por princípio os valores básicos da burguesia e na qual o parecer prevalecia nitidamente sobre o ser”, diz o professor.
Lembra González que a sociedade, para Lázaro de Tormes, se divide em dois grupos: “los que heredaron nobles estados” e “los que, siéndoles (la Fortuna) contraria, com fuerza y maña remando salieron a buen puerto”. A princípio, supõe-se que Lazarillo quer condenar e desmascarar os nobres, ou seja, os ricos, em sua ociosidade, para exaltar a mentalidade burguesa, que daria valor àquele que ascenderia socialmente por seu próprio esforço e engenho. Mas, ao fim do romance, o incauto leitor haverá de descobrir que, para Lazarillo, “remar” não significa trabalhar nem especular astutamente – como aqueles modernos construtores que usam qualquer pretexto – até mesmo o petróleo que a Petrobras nem sabe se conseguirá extrair da camada pré-sal – para valorizar exageradamente seus imóveis.
Para Lázaro, remar significa “arrimarse a los buenos”, ou seja, aliar-se aos que estão por cima, como fizera sua própria mãe e como ele próprio faria depois. Em outras palavras: segundo Lázaro, para subir na vida, é preciso ter astúcia, uma boa lábia, para enganar a todos constantemente o tempo todo. E, assim, ascender na escala social, adquirir recursos, seja lá como for, para aparentar um “homem de bem”, colocar uma espada à cinta. Por isso, munido destas informações, o leitor que chegou até aqui que olhe agora para os lados. Com certeza, irá identificar em alguém próximo um pícaro moderno.
IV
Professor de Literatura Espanhola da Universidade de São Paulo (USP) desde 1968, Mario Miguel González nasceu em Alta Gracia, Córdoba, na Argentina, mas é brasileiro naturalizado. É autor de El conflicto dramático en Bodas de Sangre, tese de doutorado defendida na USP em 1973 e publicada em livro em 1989 pela Edusp, O romance picaresco (São Paulo, Ática, 1988) e A saga do anti-herói, sua tese de livre-docência publicada pela Nova Alexandria em 1994 em que estuda a influência do romance picaresco espanhol em obras de autores brasileiros, especialmente Ariano Suassuna. Foi responsável também pela edição de Lazarillo de Tormes (edição de Medina del Campo), em tradução de Heloísa Costa Milton e Antonio R. Esteves (São Paulo, Editora 34, 2005).
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LEITURAS DE LITERATURA ESPANHOLA (DA IDADE MÉDIA AO SÉCULO XVII), de Mario M. González. São Paulo: Letraviva, 2010, 480 págs., R$ 59. E-mail: letraviva@letraviva.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é mestre em Língua e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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