– O maior mistério que cerca a vida do grande Marechal Rondon foi o fato, até hoje inexplicado, de sua mudança de rota ao estender os fios do telégrafo nestas terras que então pertenciam ao Mato Grosso...
Eu almoçava em um empoeirado hotel de beira de estrada, em Pimenta Bueno, Rondônia, quando ouvi tal comentário na mesa vizinha. Não pensei duas vezes. Pedi licença e me ofereci para pagar a conta em troca de mais informações sobre o citado misterioso fato.
Os ocupantes da mesa me acolheram como a um amigo distante que não viam há muito tempo... Não só me proibiram de pagar a conta, como um deles ofereceu pouso em sua casa, quando souberam que eu estava para me hospedar naquele hotel. Disseram que o hotel era um bom restaurante, nada mais... Dito tudo isso em surdina, nos apresentamos e continuamos a conversa.
Seu Nonato, cearense, fora guarda-fios e narrava alguns acontecimentos a outro conterrâneo seu, o Gonzaga, seringueiro por muitos anos em Costa Marques, de passagem pela cidade, em visita ao amigo.
O misterioso fato – a tal mudança de rota – permaneceu um mistério. Desejei saber em detalhes qual teria sido a magnitude do desvio; as causas prováveis; as suas conseqüências. Porém, não avançamos muito. O que mantém o encanto de certos mistérios, descobri, é precisamente a ausência de dados que possam elucidá-los. E mesmo se os dados existem, os cultores do mistério não desejam expô-los. O encanto do mistério, enfim, pode estar nos mecanismos de sua própria preservação. E nesse sentido, o seu Nonato tudo fez para preservá-lo de qualquer solução racional.
O ponto alto do mistério estava em um fato ocorrido com o Marechal: precisamente no sonho que ele tivera na noite anterior àquela em que decidira mudar o itinerário. Se o sonho existira de fato ou não, não se sabe. Narram que ele sonhara, no entanto, com muitas serpentes atravessadas no caminho. Ao aproximar-se delas, para matá-las, elas se transformavam em pequenos fios d’água, como os indicadores de rios em um mapa. Os exatos detalhes daquele mapa, onde os rios serpenteavam, que lhe ficaram impressos na memória ao acordar, teriam dado a indicação do novo rumo, que ele não titubeou em seguir...
Seu Gonzaga, para completar a rodada de conversa, contou sobre as cobras cipó, que também, em certo dia, teria lhe indicado o rumo de sua casa, depois de ter-se perdido na mata, em lugar muito distante dos caminhos da seringa. Eu, como ouvira de um mateiro a versão contrária, de que a tal cobra faz os homens perderem-se na mata, desejei saber algo mais sobre o estranho ocorrido, mas pressenti que calar era o melhor remédio...
Da cobra cipó orientadora ao pássaro da chuva foi apenas um passo. Ou um arremesso de vôo. Seu Nonato, o guarda-fios, contou como em inúmeras vezes pôde voltar para casa mais cedo, avisado da tempestade que o pássaro anunciava. Aos pequenos saltos ele traçava a coreografia do prenúncio da chuva, deslocando-se no ar, lateralmente, como que impelido pelo vento. Deixava-se cair, retomava o vôo e de novo deslocava-se para o lado...
O dono do hotel-restaurante veio limpar a mesa, ofereceu-nos café, trouxe-nos suco e mais tarde nos serviu um lanche. Ao entardecer decidimos deixar o local, rumando para a casa de Seu Nonato. O jantar seria por lá. Uma caldeirada de peixe nos aguardava. Ele expedira a ordem por um menino de recados, que levara a mensagem à sua esposa. De modo que ao chegar sentimos no ar o cheiro da pimenta verde e outros condimentos típicos da cozinha amazônica.
Por toda noite comemos, bebemos suco de açaí e ouvimos casos e mais casos. Eu me encantava a cada pequeno trecho narrado, não imaginando que a mais impressionante das histórias ainda estava por vir e foi contada ao amanhecer do outro dia, quando o sol, tímido, se anunciava:
Eu guardava fios pelas proximidades da Vila Urupá, depois Vila de Rondônia, hoje Ji-Paraná. Percorria, por conta deste trabalho, muitos quilômetros de estrada por dia. O meu trecho era imenso e eu tinha que dar conta dele de segunda a sábado. Eu descansava no domingo e voltava a percorrê-lo, tudo recomeçando no dia seguinte.
Os postes do telégrafo margeavam uma pequena picada, que ora se estreitava, ora se alargava, a depender do trânsito de homens e animais das rotas da seringa e do comércio que alguns poucos tropeiros que faziam ocasionalmente. Na maior parte dos trechos, porém, a mata avançava sobre os fios. A minha missão era impedir que as transmissões sofressem qualquer interrupção. Os cipós, aparentemente inofensivos, tinham força para romper os fios. Certos cipós, aliás, são tão obstinados ao se deslocarem em busca da luz, que arrastam consigo tudo o que encontram pela frente... Até mesmo alguns postes foram derrubados graças à força desses cipós, embora seja muito difícil fazer alguém acreditar nisso hoje...
Certos mistérios da Amazônia, meus amigos, não podem ser desvendados, pois não costumam aparecer aos olhos dos homens mais do que uma vez... Por isso não me importo com os olhares de dúvida que me lançam. Sei que fui testemunha dos mais inacreditáveis acontecimentos.
Um caso hei de contar, para vocês terem uma idéia de como a mão de Deus pode nos guiar em certas circunstâncias, nestas terras.
Vocês podem imaginar o quanto a vida de um guarda-fios era monótona... Passávamos horas e horas sem nada fazer, senão caminhar. Certos dias, estando nos trechos mais distantes, não era possível voltar para os pontos de apoio. Dormíamos, então, no alto das árvores... Além da distância de casa, a solidão da floresta, o melancólico canto de alguns pássaros e nenhuma viva alma com quem conversar. Vez ou outra quebrava o silêncio o zumbido dos insetos, um urro de onça, um bando de maritacas, uma vara de queixadas a atravessar a picada... No caso dos porcos da mata, não era de se brincar, mas de se tomar muito cuidado; eu subia em uma árvore e os esperava passar, pois eles atropelam tudo o que encontram pela frente.
Para me sentir mais próximo dos homens; para saber de suas notícias, um dia me veio à cabeça uma idéia luminosa: aprender o código Morse, o que fiz em dois tempos. Havia em cada ponto de apoio uma máquina de telégrafo rudimentar, onde pude ensaiar as primeiras mensagens e conversas.
Dizem que não é possível o que revelarei agora, mas o fato é que, um dia, deu-me na telha estender uma grande vara de aroeira bem lisa, firme e seca, com a qual eu andava e o inusitado ocorreu: passei a captar e ler todas as mensagens que transitavam por aqueles fios.
Tornei-me, assim, um informante de todas as coisas que aconteciam pelo país e pelo mundo. Tanto que em pouco tempo alguns seringueiros mudaram suas rotas, para poderem me encontrar. Eu lhes fornecia, de graça e com boa vontade, informações sobre o preço da borracha, os rumos da política, os resultados do futebol...
Um dia, retornando para casa, depois de muitos dias na estrada, senti os fios vibrarem. Tomei a minha vara e li a mensagem. Pressenti que esta havia sido vazada, isto é, não fora registrada, seja para ser entregue ou retransmitida. E pude confirmar isso, mais tarde na Vila. O operador do telégrafo cochilara e a mensagem deixaria de ser entregue, caso eu não a tivesse interceptado. O destinatário da mensagem era o administrador do nosso lugarejo. A mensagem, em si, era curta e cifrada: “Não embarque. A travessia é perigosa. O rastro de ouro é pura ilusão”.
Eu decidi investigar o caso, pois andava desconfiado do tal administrador, que não era da região e que fora colocado ali sabia Deus o motivo! Pedi ao meu chefe, que era lotado em Porto Velho, uns dias de folga, que me foi concedido “pelos serviços cumpridos e pela disciplina exemplar”. Os três dias, somado ao domingo, foi o suficiente para desvendar toda a trama do embarque.
Na verdade, o pobre homem não era nada perigoso ou desonesto. Pelo contrário. O que me fez supor tratar-se de alguém que pudesse nos trazer problemas era o seu hábito de tudo anotar em um grosso caderno de notas. E eu imaginando, cuidadoso com as coisas alheias e que não me diziam respeito, que ele estava a escrever algum relatório secreto!
Na primeira oportunidade em que pudemos permanecer a sós, fui direto ao assunto e perguntei-lhe se a frase que eu interceptara fazia algum sentido para ele. Ele respondera que sim; que ela se encaixava perfeitamente; que era a mensagem perdida da terça-feira passada.
Em resumo, era um homem letrado e instruído. As mensagens vinham de Cuiabá, onde fora seminarista, durante alguns anos. Ele e um amigo, que se tornara padre, estavam escrevendo a quatro mãos o que eles denominavam de “Lendas da Amazônia e do Pantanal”. Em seguida me mostrou os passos da lenta elaboração do livro, nascido das mensagens trocadas, dia a dia, numa paciência sem fim.
O rastro de ouro era um aviso que um personagem passava a outro, no seu embarque no rio Guaporé, em Vila Bela da Santíssima Trindade, da expedição que tinha por destino primeiro o rio Madeira. Deste eles sairiam em busca do Eldorado. Como a história é muito longa, eu a contarei em outra oportunidade.
Eu disse a mim mesmo, naquele instante, depois do caso esclarecido: “Minha santa vara de aroeira! Se não fosse você, como eu poderia descobrir uma coisa dessas!?”
Daquele dia em diante, como uma criança que encontra um novo amigo para brincar, eu contava as horas para poder voltar para a Vila. As onças, as sucuris, o mapinguari, os botos, o curupira, os tuiuiús me esperavam. Enquanto nossas esposas preparavam os filés de pescada, conforme o gosto do meu amigo, nós nos abraçávamos às lendas e nos perdíamos em meio aos tantos casos...
Os olhos marejados de Seu Nonato tentavam, em vão, esconder a emoção que as lembranças evocadas lhe causavam. Outras narrativas se sucederam naquela noite-e-manhã em que comi a melhor caldeirada de peixe de toda minha vida. Na verdade, o sabor do peixe se mesclava ao tempero próprio dos casos contados, de modo que o paladar e a audição se complementavam. Dormi como um anjo, após a sessão de cinema e do verdadeiro banquete que nos serviram, no almoço do outro dia.
Na noite do dia seguinte, já refeitos, Seu Gonzaga e eu nos vimos de novo mergulhados no talento narrativo do Seu Nonato. Entre o mingau de banana e a tapioca, ele nos serviu, saindo do forno, a história da expedição ao Eldorado. Depois de tecida toda a trama e acrescentado alguns detalhes que ele sabia tão bem acentuar, cheguei a fechar os olhos para melhor saborear a descrição de um dos trechos do enredo, como este:
...desembarcaram em uma praia, na margem direita do Guaporé, na altura do Forte Príncipe da Beira. As tracajás, pequenas tartarugas de água doce, muito comuns neste rio, saltavam em festa dos galhos das pequenas árvores existentes na beira do rio, mergulhando em suas águas quase transparentes. Nisso ouviu-se um grito medonho...
Ao recobrar plenamente os sentidos, tendo já ouvido um largo trecho da história da expedição, decidi perguntar-lhe algo, insistindo em um ponto: qual seria o grau de veracidade de, pelo menos, alguns daqueles fatos?
Ele pediu silêncio com um sinal e baixando a voz sussurrou o que disse ser o seu segredo; que não comentássemos com mais ninguém, por tudo o que fosse sagrado. Prometemos, solenemente. Disse, então, ser um inventor de prosas; que contava todas aquelas histórias para dar um colorido novo à sua vida; que estava aposentado; sua saúde não lhe permitia trabalhar como nos velhos tempos; os filhos estavam criados; de modo que não lhe restava muito a fazer, senão o refúgio de recriar casos já ouvidos e de inventar outros ainda, para se ocupar... Confessou, por fim, que às vezes exagerava nas invenciones, mas que nada fugia às regras do jogo. Dito isso, puxou o tabuleiro de dama, convidando-nos para uma rodada. Disse mais, enquanto jogávamos: que ele contaria como um seringueiro analfabeto aprendera a soletrar, sozinho, as primeiras sílabas, mesmo vivendo isolado no meio da mata, apenas por bem observar o contorno do desenho das letras nas nuvens e os sinais silábicos enviados pelo céu...
Eu, que não tinha pressa alguma em seguir viagem, acabei ficando por lá uma semana inteira. Depois, a convite de Seu Gonzaga, rumei com ele para suas terras à beira do Rio Machado, muitas léguas distantes, onde pudemos mais tarde, entre tantas pescarias, ruminar juntos as tantas histórias ouvidas.
Uma frase de Seu Nonato me acompanharia por muito tempo, lá nas barrancas do rio e que agora eu faço ressurgir ao recordar todos esses fatos: “Eu sempre deixo pistas que permitem ao ouvinte mais atento a possibilidade de distinguir com certa exatidão o que é ficção e o que é realidade, caso ele se interesse...”
Fiz questão, até hoje, de nada investigar. Nem mesmo a possibilidade de se ler mensagens telegráficas com uma vara de aroeira...
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