Chego em casa exausta após percorrer várias ruas alagadas pelos temporais. Minha calça jeans pesa. Meus tênis são lama pura. Ao banhar-me, tento retirar a sujeira de meu corpo enquanto reflito sobre as de minha alma.
Um espelho diante de mim parece inquirir sobre meus sentimentos. Passo as mãos pelos cabelos, ensaboando-os. Há meses vêm caindo. Estresse, dizem. Química, penso. É o medo de mostrar os fios brancos que me leva à química, ou é o embranquecimento em si que me conduz ao estresse? Ensaboo meu rosto, tentando remover a maquiagem. A pele fina arde. Resultado de ácidos rejuvenescedores.
Meus olhos sempre me traíram. Convivi com a miopia banindo óculos. Vi o mundo à minha maneira. Os olhos, agora, são diferentes, não têm mais o brilho nem aquela tonalidade dos vinte anos, nem as sobrancelhas a mesma espessura.
O inusitado, desde a adolescência, foi meu nariz ter sido sempre atribuído à cirurgia plástica. Mantém-se intacto, como se tivesse vida própria e nunca pensasse em me trair.
Pego a esponja e aplico um esfoliante em todo o corpo, através de movimentos circulares, no intuito de eliminar células mortas, para que a pele absorva devidamente os cremes firmadores. Alisando minha barriga, fecho os olhos, relembrando sua antiga forma: definida, sem adiposidades ou flacidez. Hoje, em seu lugar, um aglomerado de células inúteis fazem seu habitat.
Converso com aquela outra que miro. Pergunto se, intimamente, posso estar me boicotando, menosprezando o corpo que visualizo em minhas lembranças, substituindo-o por este que vejo no espelho . Virando, observo-me de lado, por trás... Distorções, onde um dia havia simetrias. Tento sorrir para o meu duplo, mas o que sai é um esgar.
Pego o pote de creme, jogo-o de encontro ao espelho e, nos fragmentos que ficam presos à parede, tento encontrar a verdadeira imagem de quem sou.
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