Como qualquer leitor, conheço centenas de obras da literatura brasileira dos anos 1970 em diante. Isto é, livros editados durante minha formação intelectual. Porque divulgava o jornalzinho Intercâmbio (1974/76) e a revista O Saco (1976/77), consegui me pôr em contato com centenas de poetas, contistas e romancistas de todas as regiões. Muitos deles se tornaram meus amigos. Alguns se fizeram muito conhecidos, como Glauco Mattoso. Outros foram publicados por grandes editoras, mas não tiveram seus nomes inscritos na lista dos preferidos dos articulistas e dos mestres e doutores em Letras. Nem aparecem nos modelos repetidos dos resenhistas: “Desde Guimarães Rosa não aparecia escritor tão...”. A crítica em livro ou periódico é sazonal: passa uns meses a falar bem de um fulano, depois o esquece, para dar lugar a outro gênio. O ensaísmo acadêmico parou no passado mais remoto. Se seus cultores pudessem, ficariam eternamente em Homero. Quando chegam a Guimarães Rosa, Clarice Lispector ou Samuel Rawet, é como se alcançassem a beira do abismo: param, arregalam os olhos de pavor, pedem proteção divina e, trêmulos, recuam a Machado de Assis. Arrependidos de tanta ousadia, prometem nunca mais dar passo tão perigoso.
Até o início de 2011, eu não conhecia Carlos Trigueiro, apesar de ter ele nascido em 1943. É um dos poucos escritores brasileiros de minha geração que eu ignorava. Não sei explicar o porquê disso, sobretudo sendo ele “um dos nossos melhores contistas”, segundo Ivo Barroso. E tem publicado por grandes editoras. Talvez esteja exatamente aqui a razão desse meu desconhecimento dele. Pois não comprava obras de escritores “novos” ou em voga, por não dispor de dinheiro.
Trigueiro estreou em 1985, com Memórias da Liberdade. Mais um motivo para não me aproximar dele: não sou leitor de memórias de vivos. Além disso, ele morava no exterior (o que dificultava, certamente, nos conhecermos). Seu primeiro volume de contos é O clube dos feios e outras histórias extraordinárias, de 1994. Seguiram-se O livro dos ciúmes (1999) e Confissões de um anjo da guarda (2008). Tem também um romance: O livro dos desmandamentos, (2004) “que é uma mescla de ensaio, teatro mambembe, romance de cordel” (Ivo Barroso).
Nas três coleções não há nenhum conto à moda antiga (enredo claro; conflito de personagens; começo, meio e fim; tempo e espaço limitados; desfecho enigmático; etc). Apesar disso, o narrador-testemunha está presente em muitas delas e a trama evolui lentamente. A narração, entremeada de falas, se estende por algumas páginas. Em “O clube dos feios”, que abre o conjunto cujo título é o mesmo da peça, não há um episódio apenas, mas uma sequência deles. O narrador não participa diretamente do drama. Conta a história de um clube londrino muito específico: o Clube dos Feios. Os seres fictícios aparecem aos poucos: Maiden e Franklin (casal que cuidava de tudo na agremiação), a senhorita Milfford, McEnroe e poucos outros. Em “Metempsicose” há também um narrador-personagem, muito mais presente no que no anterior: a narração é um diário, assinado por Diário ou simplesmente Di. Em “A Associação dos Indivíduos de Apelido Cheong” tem-se um observador onisciente, a contar a história do chinês Cheong, “velho pescador, descendente de pescadores”. Em “A Lenda do Homem Letrado” também se encontra um ser onipresente. Entretanto, a narração é breve. O tema é a relação entre liberdade e poder. O ditador ordena: “Tragam o homem letrado à minha presença”. E passa a interrogá-lo. O “senhor ditador” decreta: “Neste país, o ato de ler e escrever d’agora em diante constitui crime”. Mais adiante, institui a pena: “todos os homens letrados serão submetidos ao Processo de Leitura Regressiva”. Como outras, esta obra é uma parábola ou alegoria.
No segundo volume, a estrutura narrativa é semelhante à do primeiro: narrações longas, alguns diálogos, narradores em primeira pessoa, “enredos” estrangeiros, etc. Entretanto, há certa unidade neles, notória no título: O Livro dos Ciúmes. Isto é, todas as composições se referem ao “monstro de olhos verdes” – o ciúme –, tão caro a Shakespeare no Hamlet. A primeira – “A musa dos ciúmes” – é como se fosse o capítulo inicial de um romance. Um escritor (primeira pessoa) é “despertado por vozerio”. São as vozes de seres de suas composições literárias. Discutem o futuro de seu criador: “Fiquei sabendo haverem deliberado que eu começaria, já na manhã seguinte, a escrever novo livro a fim de quebrar o longo jejum literário. O título seria O livro dos ciúmes, teria 208 páginas, tantas histórias quantas ali coubessem, desde que não excedessem de doze, e seria prefaciado por dramaturgo ou cineasta”.
Em “Os fios da tarântula”, Mirna, “habilidosa com agulhas e fios”, casada com Kassib, num fim de tarde, é despertada por uma voz, a lhe pedir ajuda: “Estou preso, preciso que me libertes”. É uma “pequena tarântula, tecida ao lado do cão e do camelo, logo abaixo do grande floral vermelho”, num tapete. E, aos poucos, a teia ficcional se desenrola, repleta de curiosidades e aventuras. “Oito minutinhos”, uma das mais curtas da coleção, é quase uma anedota. Nela há dois narradores (não se trata de técnica nova): o que inicia a narração e um personagem dela, Apolinário Xavier. Em “O bandarilheiro fantasma” somos remetidos ao mundo das touradas, a Madri, à Plaza Monumental de Toros. História de ciúme, amor e morte. E dois tipos muito estranhos: um bandarilheiro, “parecendo criatura sobrenatural”, de nome Raul, e o toureiro Domingos Ordoñez, que amavam a mesma mulher, “uma cigana de beleza invulgar e forte sotaque andaluz”.
Falar em evolução no percurso literário de Carlos Trigueiro é embromação. As peças dele seguem quase um modelo, como mencionei linhas atrás. Não um modelo da literatura, mas um modelo próprio, uma marca: narração longa, linguagem de fácil entendimento (quase jornalística ou ensaística), com foco num personagem. Não qualquer ser semelhante aos tipos humanos. Assim, um anjo é o protagonista de “Confissões de um anjo da guarda”, também título do conjunto. Como é óbvio, contado na primeira pessoa. Esse narrador é Mahlaliel, “um anjo da guarda dissidente”. Como em outras narrativas, uma sátira social. Além disso, Trigueiro está sempre discutindo o fazer literário: “Os fantasmas de cada escritor interferem – escrever é um terço de confissão, outro de persistência, outro mais de resistência; o resto é indignação.”
Na verdade, Carlos Trigueiro pratica a intertextualidade às escondidas, por debaixo do pano. Aquilo que chamavam de plagiarismo múltiplo. A intertextualidade é mais usual do que se pode imaginar. Basta citarmos Shakespeare, Dante, Petrarca, Camões, Swift. Ou, mais recentemente, Machado, Joyce, Borges, Pessoa, para mencionar apenas alguns gênios. Muito escritor morre de medo de ser copiado. Outros, fogem dos modelos, dos arquétipos, da obra canônica. Ora, o mal está em não conseguir fugir da cópia e cair no charco chamado plágio. Os gênios não copiam, não plagiam. São homens letrados. Já os medíocres, que não sabem ler de trás para frente, estes plagiam, copiam. Porque não sabem (não podem) recriar. São afeitos ao kitsch, falseiam a arte, praticam “engodo artístico”. São carnavalescos que se vestem de rei (não vejam preconceito nesta frase, por favor), monarcas de falso reino. Não chega a ser teatro o que fazem. Não vão além da imitação que não convence. Ou da arte que não persuade. Ao contrário da arte de Trigueiro, que é convincente, mesmo não sendo genial. É, pelo menos, arte de homem letrado.
Fortaleza, abril de 2011.
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