Na crônica “Gengis Khan na poeira”, comentei o meu espanto ante o fato de, graças à alta tecnologia, viver melhor, “em muitos aspectos”, que a nata da elite do mundo pré-industrial. Alguns amigos, em mensagens de e-mail, levantaram questões que, realmente, põem em xeque esse entusiasmo. Não sou bom enxadrista, mas vamos ver como me saio.
Sim, foi feito um teste e restou provado que uma Ferrari demora muito mais a atravessar Londres, hoje, do que uma carruagem no século XIX. Será, porém, que isso se deve mais à tecnologia moderna em si ou à sua conformação – acidental – ao sistema sócio-econômico em que vivemos?
O capitalismo tudo ajusta ao critério da máxima lucratividade. Ora, o consumo individual é, em regra, muito mais lucrativo que o coletivo. Por isso que engarrafamentos de veículos (a maioria ocupada apenas pelo motorista, embora com espaço para mais quatro passageiros) são comuns em nossa rotina urbana.
Além do mais, não é interessante à indústria capitalista produzir nada que seja muito durável. Pois, se o automóvel (ou qualquer mercadoria que incorpore alta tecnologia) for resistente à ação corrosiva do tempo, a demanda logo se satura, isto é, não restará ninguém a quem vender. Daí a invenção, pela gerência científica, desse artifício irracional conhecido como “obsolescência planejada do produto”: a fabricação em massa de artefatos com vida útil deliberadamente curta — a rebimboca da parafuseta funcionando melhor como bomba-relógio: na hora marcada, explode.
Outro artifício (dentre muitos) para manter e mesmo ampliar a demanda é a facilitação da venda a crédito: parcelar a compra da engenhoca eletrônica dos sonhos em noventa prestações (com juro alto, porém tão diluído que somente o vizinho invejoso – e próximo endividado – é capaz de perceber). O resultado de tudo isso, chamo-o de efeito blade runner: pobreza (grande legião de inadimplentes) e poluição high-tech.
E há quem ache (as carcaças da fauna recém-extinta dos neoliberais) que tal realidade noir é o melhor mundo possível para todos os terráqueos. Enganam-se. Esse modelo, que tem como vitrine as megalópoles estadunidenses, não é universalizável. Com efeito, segundo Andrew Simms, diretor da New Economics Foundation, “seriam necessários pelo menos três planetas Terra se todos vivessem nos padrões da Grã-Bretanha. Cinco se vivêssemos como os [norte-] americanos”.
Admito, porém, que a ciência e a tecnologia que ela implica trazem, por si mesmas, novos problemas: custos sociais e psicológicos. Até porque, como afirmou Blaise Pascal, o conhecimento é como uma esfera, de sorte que, quanto maior o volume, mais extensa sua superfície, isto é, o contato com o desconhecido.
Antes da Revolução Industrial, mesmo o mais simplório camponês conhecia, a ponto de saber consertar, os artefatos da sua lida cotidiana: arado, cata-vento, monjolo, cinto de castidade… Atualmente, quem tem conhecimento dos detalhes estruturais e funcionamento interno do televisor digital, microcomputador, motor de automóvel ou telefone celular? Para a esmagadora maioria – que inclui doutores, literatos e filósofos – é tudo caixinha mágica. Sim, nas palavras do escritor Arthur Clarke, “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”.
Essa não-transparência acentua o que Marx chamou de “alienação”: o alheamento dos homens de seus produtos materiais e espirituais. Folhetins e películas de ficção científica têm retratado o horror que isso nos inspira: a humanidade escravizada por máquinas autoconscientes.
Selva de pedra, tribos urbanas hostis, animismo “nova era”, obscurantismo redivivo… Os deuses e demônios de outrora substituídos por alienígenas — com suas tecnologias misteriosas, místicas.
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Crônica publicada no jornal Diário do Nordeste, em 10/04/2011./////