Certa crítica, se quiser de fato tornar-se contemporânea, deve reagir contra o distanciamento que cria entre si e as obras, quando paradoxalmente quer aproximar-se das mesmas com seus métodos. Lendo os contos do livro — sem maiúsculas — “vida cachorra”, de Mariel Reis, de imediato percebemos a simplicidade imprópria do método que alguns críticos consagraram à literatura que localizam nos subúrbios ou nas periferias. A análise majoritariamente feita (e malfeita) assevera que essa literatura é mimética. Para tais comentadores, a obra do autor espelha a sua realidade, devendo adequar-se a ela para ter sua fundamentação e embasamento. Uma concepção que, além de mutiladora, é irônica, posto que se uma obra não realiza por si o real, também o real — conclui-se — não poderia engendrá-la como obra sua. Não poderia ser, portanto, a base e o fundamento de sua adequação.
Se tentássemos, contudo, com essa orientação metodológica, ouvir o que nos diz “vida cachorra”, certamente não ouviríamos o sentido desta “vida”, da qual o título nos dá notícias. E caso a classificássemos, já a princípio, como “literatura de periferia”, consecutivamente toda interpretação e leitura dessa obra seria conduzida e vergada ao que seu contexto social “periférico” poderia supostamente nos dizer, ao mesmo tempo em que colocaríamos em segundo plano o dizer da própriaobra. Notemos que até mesmo a classificação “de periferia” parte antes da cena social em que a obra é produzida, sem que o próprio texto nos possa afiançar tal nomeação. Esse termo reduz a obra ao que ela jamais poderia corresponder: a ser uma fala social. É certo que a literatura de Mariel nos dá notícias de algo mais, algo para além dessa simples fala.
Se tentássemos, contudo, com essa orientação metodológica, ouvir o que nos diz “vida cachorra”, certamente não ouviríamos o sentido desta “vida”, da qual o título nos dá notícias. E caso a classificássemos, já a princípio, como “literatura de periferia”, consecutivamente toda interpretação e leitura dessa obra seria conduzida e vergada ao que seu contexto social “periférico” poderia supostamente nos dizer, ao mesmo tempo em que colocaríamos em segundo plano o dizer da própriaobra. Notemos que até mesmo a classificação “de periferia” parte antes da cena social em que a obra é produzida, sem que o próprio texto nos possa afiançar tal nomeação. Esse termo reduz a obra ao que ela jamais poderia corresponder: a ser uma fala social. É certo que a literatura de Mariel nos dá notícias de algo mais, algo para além dessa simples fala.
Se algum comportamento ou valor social setorizado aparece neste livro, ele surge como mediação para um conflito, mas não como o próprio conflito. O que fora da obra sabemos ser setorial ou regional, na obra se nos dá como sendo o mundo inteiro. Talvez a chave para essa leitura seja a construção de uma fala plenamente emancipada: sempre em primeira pessoa, no “vida”, cada narrador nos dá a versão do que viveu com uma autonomia de consciência e existência, sem que a intervenção de um autor reproduza sua situação social, localizando-a previamente.
Com um texto marcado por iniciais minúsculas, que geram frases sempre continuativas, e de ideias ininterruptas, expurgam-se os espaços das inserções autorais — nas quais um autor conduz o discurso subjetivamente —, para ouvirmos somente uma voz-personagem construindo o mundo, como se narrasse o mito de sua própria vida. Essa consciência autêntica do personagem nos traz uma hesitação: o comportamento e os valores são sociais, específicos, mas o conflito radica-se na existência de qualquer um. É a fala de um homem para o homem.
Tal é o caso do conto “indigestão”, em que a relação do patrão com seu empregado, ali existencialmente secundária, é sintomática de algo mais íntimo: a exploração não se dá no trabalho diretamente (que passa a ser vantajoso e confortável), mas na concreta indigestão humana da manipulação de sua família. O sucesso no trabalho passa a ser a recompensa da desumanização e da traição. O protagonista prefere não tê-lo.
Questões morais são colocadas em suspenso e dão lugar a uma ambivalência da ação, que não se justifica pela carência da condição social. Peguem-se, como exemplos, os contos “espírito natalino” e “sueli”. No primeiro, há um Papai Noel “bandido” que cobra por um assassinato, mas recusa, comovido, o dinheiro de um pai que desejava surpreender o filho com sua presença natalina. No segundo, a prostituta Sueli confessa sem rebuço, ou opróbrio, ter mais de uma clientela em sua vida: uma em casa (seu companheiro) e outra na rua: “no fundo, um outro cliente. de outro tipo.”
O fetichismo, o ritualismo, a loucura, a solidão, o indivíduo animalizado, a ipseidade egóica, a funcionalização do outro, todas essas potências e atualizações humanas são postas nesses contos sob uma narrativa antropogênica, isto é, de construção do humano. Mariel Reis tem o mérito de nos apresentar protagonistas vivos, ou — como ensina o crítico Ronaldes de Melo e Souza — “emancipados de autor”, e com experiências próprias para contar. Essa “vida cachorra” parece nos falar mais do fenômeno ôntico que é o homem, do que denunciar uma sua situação social.
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*Ronaldo Ferrito é autor de A Via Excêntrica (Editora Cofraria do Vento)
Fonte: O Globo Online
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*Ronaldo Ferrito é autor de A Via Excêntrica (Editora Cofraria do Vento)
Fonte: O Globo Online
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