Não a chamo, calo-me quando lhe escuto a cadência dos passos cavos no oitão da minha casa. No mais das vezes, na vã tentativa de não lhe dar guarida, fecho o semblante, enrugo a testa... e faço cara de poucos amigos. Aí, acabo logo percebendo, é que ela se abanca na minha alcova vazia! Alcova antes habitada apenas por mim, por meus livros e rabiscos.
Sinto — aquele indescritível frio ao longo da espinha dorsal — que ela, após abrir a porta do quarto, discretamente, sem nenhum rangido, põe logo os olhos miúdos e fundos nas minhas anotações de aprendiz de escrevinhador, a esboçar o seu costumeiro riso de mofa.
Viro-me, recuso-me a lhe dar atenção, e abro a janela em busca do ar da noite. Lá fora, os pardais, ariscos, tomam conta do cicio da madrugada — como se o passaredo, omisso, desistisse dos seus ninhos e deixasse a mesmice, soberana, reinar na cúpula dos benjamins e algarobas.
Inflo, então, os pulmões, haurindo o vento inodoro de um aracati distante, distante no tempo e na lembrança. O exercício cotidiano de adaptação a bicho da grande cidade tornou a minha mucosa nasal insensível aos odores de outrora.
Dou um tempo, na esperança de que, ao me voltar para o centro do aposento, dê de cara com a sua “benfazeja ausência”.
No entanto, lá está ela. Impassível. Impassível e bem à vontade. E o que é pior: sentada na cadeira do meu birô, de óculos na ponta do nariz, a ler, atentamente, os apontamentos daquela noite. De quando em vez, um risinho de zombaria.
De repente, leva a mão ao lápis e passa a rabiscar os meus textos.
Tive ânsias de defenestrá-la. De gritar-lhe umas verdades. De explicar-lhe que não se mexe assim em coisa alheia.
Antes de esboçar qualquer reação, ela me dirige os olhos e leio neles, em letras garrafais: “Sou coautora de suas páginas. Tenho o pleno direito de revisá-las. Por uma Questão de Prosa. E de honra, que fique bem claro!”
Engoli a seco minhas ânsias e rumei para próximo dela. Às suas costas, na luz mortiça do abajur, pude observar sua letra miúda e cursiva a se intercalar por entre as palavras e sentenças. Uma revisão aqui, outra ali. Sempre com a singular marca do seu estilo. Seco, frio, sem adjetivos, nem admoestações.
Horas após (quero aqui confidenciar que o tempo escorreu pelo relógio da parede sem nos darmos conta), minhas escrevinhações ganharam uma pátina singular. Doída, sentida e... sobremodo pungente. Enfim, trágica e forte. Como se escrita com o espinho a furar coração e espírito.
O sol dá sinais da manhã. E o galo da vizinha reina sobre o confuso trinado dos insones pardais.
Ela, então, se levanta, guarda os óculos no bolso, abandona o lápis sobre o ponto final, e deixa a minha casa tal qual chegou.
Não sem antes me lançar (em palavras do dicionário dos olhos) uma sentença fatal:
— Se queres a minha companhia, deixa de fingimento e mergulha fundo no meu rio, cronista de meia-tigela!
Eram quase seis da matina, quando ouvi o portão do jardim, discretamente, ser fechado.
Acompanhei a Solidão sumir na bruma das ruas.
“Cronista de meia-tigela!...” Os miolos roídos por aquela espécie de veredicto. “Cronista de meia-tigela!... Cronista de meia-tigela!...”
Exausto, enfim dormi. Profundamente. Não me lembro por quanto tempo.
Ao levantar, lavei bem o rosto e voltei, às pressas, ao birô. Minutos após, já empunhava lápis e papel, contudo...
Queria escrever uma nova e bela crônica, confesso que não consegui.
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