O caso que eu ora hei de relatar, tal como aconteceu, teve início nos primeiros anos da Segunda Grande Guerra.
Eu que não desejara tornar-me um Voluntário da Pátria, decidi passar uns meses na casa de um tio-avô no Ceará. E não é que me descobriram por lá? Não me sabiam o nome, mas pelo meu aspecto adivinharam que eu estava em plena forma física, apto, portanto, para exercer os meus deveres de cidadão e guerreiro. Não tive escolha, senão seguir os homens.
Descobri, porém, a tempo, que eu poderia escolher outro destino. E escolhi, tornando-me, por uma dessas santas loucuras da vida, um soldado da borracha. Embarquei, assim, para a Amazônia no primeiro navio que aportou em Fortaleza rumo a Belém. Meu desejo era passar uma temporada de explorações e aventuras por lá, para depois voltar para casa...
O fato é que eu não retornei a lugar algum. Meu pai, mineiro e fincado ao seu chão, tal como seus antepassados desde muitas gerações, esperou-me por longos anos. Morava em um sítio, cujas terras eram banhadas pelo rio São Francisco, precisamente em Buritizeiros, cidade vizinha de Pirapora. Recebia minhas cartas, vez ou outra. E como devoto de todos os santos, sei que rezava por mim. E me aguardava, com a certeza inabalável que o seu filho um dia voltaria para matar-lhe as saudades.
Voltei a passeio, casado e com filhos, décadas depois, após viver embrenhado nas matas e cidades da região amazônica.
Como bom contador de casos, ele desejou saber se eu não tinha um desses especiais a lhe contar, de modo que ele o transformasse em um de seus fantásticos contos de encantar, assombrar...
Depois de consultar a memória, localizei o caso do qual fui também personagem, ocorrido próximo a Humaitá, no Amazonas. Eu subia o rio Madeira, rumo a Porto Velho, onde morava na ocasião, quando decidi permanecer uma temporada naquela cidade. Um amigo, ex-colega de labuta em um seringal, me encontrou no porto, tendo me intimado a conhecer sua fazenda de búfalos, tal como as da Ilha de Marajó, onde eu trabalhara numa delas, muitos anos antes.
Depois de consultada a esposa, aceitei o convite. Eu regressava de uns negócios e de umas breves férias em Manaus, com a família e o tempo contava a nosso favor.
O meio de transporte até a fazenda foi o lombo de burro. De modo que seguimos em uma pequena tropa, alugada para tal fim. A idéia de se ter uma porção de terra para se criar búfalos, naquele tempo, era simplesmente estapafúrdia. O que existia, então, eram seringais. Nada mais que isso.
Eu me tornara comerciante ao deixar o seringal. O meu amigo e uns parentes paraenses decidiram, ao modo deles, colonizar aquele lugar. Tornaram-se desbravadores e abriram umas estradas um pouco maiores que as picadas, de modo que era possível trafegar por lá com uma carroça ou um carro de boi sem muita dificuldade.
E lá fomos nós, felizes pela nova possibilidade de vivermos alguma aventura. Os meninos, acostumados com tudo, não esperavam a hora de andar em lombo de búfalo. A minha esposa, ao saber dos queijos que se faz com o seu leite, combinava com as outras mulheres o que haveriam de fazer. E nós, os homens da lida, pensávamos nas pescarias e nas macaxeiras que teríamos que tirar para alimentar todas aquelas bocas - três famílias inteiras seguiam no comboio.
No meio do caminho, uma encruzilhada. E num dos lados da estrada, sentido Sul (eu levava comigo minha inseparável bússola), um pequeno rancho. O dono daquela casa de pau-a-pique, um homem de cabelos longos e barba espessa, bem aparada, tomava tranquilamente o seu sol da manhã, alheio a tudo à sua volta. Meu amigo, diante do olhar de interrogação que lhe dirigi, prometeu contar-me a sua história logo mais... Cumprimentamos o tal personagem e seguimos viagem.
Eis a seguir a história do homem, contada pelo meu amigo, tal como ele me narrou, com pequenos acréscimos meus:
Um dia, perdido, vindo de um seringal distante, corrido por ter se envolvido em uma briga, que por pouco não resultava em morte, veio este homem a esta encruzilhada, que existia por ser trilha de bichos da mata. Ele sabia que o seu destino estaria no caminho que ele decidisse escolher. Teve um momento de rara lucidez, um daqueles instantes luminosos em que o passado e o futuro se encontram e o presente se torna prenhe de sentido. Dizem que nesses momentos o Anjo do Destino abre uma imensa clareira nas noites de nossas dúvidas e angústias. E uma picada apareceu, indicando-lhe o rumo a seguir.
São coisas que ouço por aqui, de uns devotos de Santo Antônio. O caso é que esse homem teve este instante de lucidez justamente naquela encruzilhada. De tal modo que todos os caminhos lhe pareceram dignos de escolha. E qual deles tomar? – perguntou-se.
Acampou na ponta da encruzilhada e depois de umas noites sem pregar os olhos, ouvindo o ronco das onças e todo o silêncio das madrugadas, decidiu ficar. E ergueu aquele pequeno rancho. Num rio que passa perto pesca o seu alimento. Para completar a dieta planta, num roçado próximo, a sua macaxeira e alguns legumes.
Ele é um homem letrado, pois durante anos trabalhara como guarda-livros em um seringal, além de haver sido improvisado mestre-escola por algum tempo. Escreve cartas para muitos e faz contas como ninguém.
Acima de tudo, é bom conselheiro. Desde então tem se tornado uma espécie de orientador espiritual por estas bandas. Nas suas meditações no silêncio da madrugada costuma encontrar o rumo dos tantos destinos que Deus lhe tem colocado nas mãos. Ele deve ter lido em algum livro, mas o certo é que uma de suas frases favoritas é esta - os fios do destino podem se trançar, se embaraçar, mas jamais se rompem. E mais: ele diz que sua missão é desembaraçar os fios dos destinos alheios.
Não se passa um dia sem que ele receba um ou outro peregrino em busca de rumo. Muitos permanecem em tratamento naquele mesmo rancho por semanas ou meses. Segundo ele, para reaprender a caminhar.
“Não basta ensinar o rumo a seguir; temos que também preparar as pernas para que possam suportar a caminhada nova”, costuma filosofar. E, assim, entre pirões de dourado com macaxeira, açaí com farinha, pupunha cozida e outros fortificantes, ele trata a alma e o corpo do navegante sem rumo.
Eu mesmo, certa feita, com um problema enorme para resolver, procurei-o. Ele contou casos e lendas por mais de três horas. Eu não ousava interrompê-lo. E nem mesmo conseguiria, pois ele é um exímio narrador. Prendendo-me a atenção por tanto tempo, ao final das narrativas perguntou-me: “Qual é mesmo o seu problema?”. Eu, surpreso, dei-me conta de que já tinha encontrado a solução, sem nem mesmo perceber. Rimos muito...
O que mais nos tem chamado a atenção, minha e das poucas almas vivas que transitam por estas terras, é que ele recusa toda oferta de auxílio. Certa feita recusou uma alta soma em dinheiro, de um estrangeiro que andava por estas bandas e que se consultara com ele. Sentiu-se mesmo afrontado com a insistência do americano em lhe pagar pelas orientações. Fez o homem mais do que branco, por conta disso, passar mais três semanas com ele a retirar do chão, com o próprio suor, o alimento... Surpreso e encantado o americano submeteu-se a tudo com alegria. E dizem que ele tanto aprendeu a lição, que teria dito no seu apagado português que dinheiro não era tudo na vida...
Bem, quando retornei da fazenda, desejei conversar com o ex-guarda-livros. Minha esposa, no entanto, impediu-me de fazê-lo dizendo em bom e claro português, na fala bonita dos maranhenses:
- O teu destino, meu caro, está aqui em minhas mãos, entrelaçado ao meu! Não te preocupes, pois enquanto eu mantiver as tuas rédeas bem curtas, junto de mim, não te perderás...
Diante da lógica férrea de suas palavras e de tão persuasivo conselho, seguimos viagem, sem olhar para trás.
Meu pai, depois de ouvir atentamente o caso, tratou logo de contar a sua versão, que se iniciava assim:
- Lá pelas bandas da Serra da Canastra, onde o São Francisco começa a deitar suas águas rumo ao mar, conheci um homem que tinha um estranho apelido: Senhor Encruzilhada...
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