(Felipe, Nilto e Carlos Nóbrega)
Muitas vezes somos compelidos, os cronistas, a nos copiar. Que o diga Airton Monte, há anos devotado a escrever todo dia uma página para jornal. Pois esta crônica lembrará outra, que começa quase assim: Numa noite de 2007, Pedro Salgueiro e eu bebíamos cerveja no bar do Assis, na Gentilândia, e contávamos antigas histórias de gênios incompreendidos. Tudo invenção nossa, que gostamos de ridicularizar nossos amigos. Nessas ocasiões, o riso me dá muita sede. Vamos pedir mais uma? E Pedro gritou: Assis, traz a segunda. Sem se deixar enganar pela astúcia brincalhona do frequentador diuturno de seu bar, o comerciante se aproximou de nossa mesa: Esta é a quinta. Tomei mais um gole e senti saudade do banheiro. Imaginei a sequência de minha ação: Por-me-ia de pé, como os bípedes comuns, caminharia até o sanitário, sem pressa, e... Não consegui dar o primeiro passo: Cercavam-me dois indivíduos corpulentos, risonhos e tagarelas. Cumprimentaram meu gordo comparsa e me olharam com curiosidade de aventureiros. Pedro tratou de apresentá-los a mim: Nilto, este é o contista Felipe Barroso; e este é o filósofo Manuel Bulcão. Apertadas as mãos, corri ao toalete. De volta, ouvi falarem de Carlos Emílio. Não sei bem o que diziam. Para mudar de assunto, os dois pediram uísque.
Lembrei-me da figura de Felipe em uma noite no Ideal Clube ou no Espaço Cultural Oboé. Mostrava-se um documentário dele a respeito da Padaria Espiritual. Então você é o documentarista? Sim, sou eu. E logo passamos a falar de cinema, passado, literatura e projetos. Revelou o nome do seu próximo documentário: Subversivos. Interessado no assunto, pus-me a mentir: Posso ajudar, Felipe. Conheci e conheço todos os revolucionários cearenses desde 64. Narrei umas histórias, que ele achou inverossímeis. Você conhece Tarcísio Leitão? Fazia comícios de pegar fogo. E José Genuíno? Vi-o muito em palanques nas faculdades e nas praças.
Felipe Barroso é pessoa quase sisuda. Dedica-se, com afinco, ao magistério, ao áudio-visual e à literatura. Não me interessei por seus documentários, porque me afastei da revolução muito cedo e tratei de viver quietamente, como se não soubesse de nada. Na rua, falavam-me horrores (fulano foi preso, sicrano desapareceu, beltrano foi estrangulado no quartel). Apavorado, eu fugia para casa, lia Dostoievski e dormia. Você também escreve, Felipe? Sim, uns continhos. Modestíssimo esse mestre. Não faz aquela cara de falso gênio quando cutucado. O velho que ainda escrevia cartas de amor, primeiro livro dele, é ótimo. Até rabisquei uma resenha dele.
Tem ido à minha casa. Primeiro telefona, promete vir, depois marca data, desmarca, remarca. Há sempre um motivo muito importante para me visitar: Quero combinar uma entrevista com você. Sua mais recente proposta é a gravação da leitura dramática de um conto meu para televisão. Não vem apenas beber ou jogar conversa fora. Chega na hora aprazada, cheio de pacotes (mortadela, queijo, biscoito, vinho, cerveja). Sempre suado e calorento, pede um ventilador. E exige a velocidade máxima. Aqui está muito quente, meu amigo. Vai à cozinha, lava copos, pratos e talheres, à vontade, e se põe a preparar os quitutes. Tento aquietá-lo. Sente-se, homem. Tome um uísque. Compro-lhe o melhor, o mais caro, o mais escocês. Não precisava tanto, Nilto. Bastava um nacional. Não o deixo falar: Conte sua viagem à Alemanha. Pois vive na Europa. Não a passeio, mas a estudo, trabalho, pesquisa. Não fala muito de viagens, cidades visitadas, museus, monumentos. Você precisa conhecer Londres. Mudo de assunto, pois me sinto avesso a viagens e outros mundos. Andei estudando inglês, mas papagaio velho não aprende a falar. Passei dias alisando mapas, calculando distâncias e despesas, lendo Shakespeare, em português. Você precisa ler no original. Certa noite, corri ao quarto dos poetas esquecidos e trouxe um Hamlet. Não consigo ler nada, Felipe. Leia, pelo menos, uma fala, homem. Tentei ler: “You come most carefully upon your hour”. Ria com os olhos. Tive vergonha. Está muito bem. É sempre assim, polido, generoso. Porque sabe que a grosseria e o egoísmo, embora humanos, não fazem amigos. E ele quer ser amigo de muita gente, sobretudo dos que estudam, trabalham, pesquisam, constroem. Por isso, sua admiração pelo pessoal da Padaria Espiritual e pelos escritores de todos os tempos. Pela História, pela memória cultural. Em razão disso, vem promovendo entrevistas com escritores, sempre em duplas: um mais velho e um mais novo. Como o fez comigo e Tércia Montenegro. Acordou-me de madrugada com o barulho de um caminhão diante do portão de minha casa. Trazia máquinas e operadores de TV e fez de minha sala um estúdio. Como se entrevistasse escritor famoso.
É fim de março, ando preguiçoso, a dormir muito. Há dias imagino falar de Felipe Barroso. Invento pequenas histórias. Desisto, porque ele não gosta de ser personagem. Gosta de criar personagens. Talvez tenha pensado em mim, quando criou aquele velho que escrevia cartas de amor. Não, não me conhecia. E eu não me sentia ainda tão cansado e sem memória.
Fortaleza, 31 de março de 2011.
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