Em sua obra Memórias de um revolucionário, Victor Serge fala do seu deslumbramento a bordo de um avião: a paisagem vista do alto, nuvens – lá embaixo – aparentando flocos de algodão herbáceo… Diz, também, não compreender a atitude da maioria das pessoas: acostumar-se a ponto de não olhar, nem mesmo de esguelha, para a janela (logo que a aeronave decola, abrem um jornal, comem alguma coisa e, depois, hibernam).
Assim como Serge, sempre me maravilho quando em voo de cruzeiro. Até nas viagens que faço com minha filha, disputo com ela a poltrona ao lado da janelinha. E fico irado quando me sento e dou com a asa metálica obliterando a visão.
Outra coisa me espanta sobremaneira: eu, que pertenço à classe média mediana descendente, graças aos produtos tecnológicos da ciência moderna, ter, em muitos aspectos, uma vida melhor e mais rica que a de todos os imperadores ou potentados do mundo pré-industrial. De fato, qual deles contemplou a crosta terrestre a doze mil e quinhentos metros de altura? Gengis Khan, cavalgando nos melhores cavalos, alcançava, talvez, oitenta quilômetros por hora. Ora, em meu automóvel popular 1.6 deixo-o na poeira: já cheguei a cento e quarenta, velocidade maior que a do mais rápido animal terrestre: o guepardo.
Em quanto tempo Xerxes tomava conhecimento de algo ocorrido na fronteira do seu império? Alguns dias. Pois, numa lan-house, alugando por cinco reais um microcomputador ultrapassado, entro em um chat virtual ou lista de discussão por e-mail e converso com pessoas dos mais distantes cantões do Planeta – Tóquio, Paris, Coimbra, Luanda, Alaska… – como se estivéssemos na minha sala de estar, fisicamente reunidos.
E que me venham pelo “túnel do tempo” três samurais furiosos, armados com espadas afiadíssimas. Derrubo-os com tiros de revólver calibre vinte e dois.
Hoje, por conta da tecnologia da eletricidade e da invenção do termostato, pode-se controlar a temperatura, mantê-la em graus Celsius negativos e, assim, conservar alimentos de forma mais eficiente. Por isso que, em minha geladeira, disponho não apenas de frutos de clima semiárido e da estação (tamarindo, castanhola, pitomba…) como também de ameixas, morangos e figos “frescos”, transportados em câmaras frigoríficas de cargueiros transatlânticos. Já em épocas anteriores, a durabilidade de alguns alimentos, como carnes, era prolongada fazendo-os secar ao Sol, defumando-os ou os salgando a ponto da saturação. Meses depois, removido o excesso de sal, embora ainda comestíveis não tinham mais sabor. Palha pura! Daí a necessidade de sobrecarregá-los com condimentos — o que impulsionou a navegação europeia: a busca marítima por especiarias (cravo, pimenta-do-reino, baunilha, cominho, canela, noz-moscada…) em terras remotas. (Imaginem D. Manuel I de Portugal comendo um assado de panela e só sentindo o gosto do tempero.)
Embora um animal frágil, graças ao neocórtex superdesenvolvido e seu produto atual, a alta tecnologia, corremos, nadamos, voamos e percebemos a realidade melhor do que qualquer outro bicho. Infelizmente, também somos assassinos inigualáveis. Em termos metafóricos, somos um ornitorrinco eletrônico com asas. E turbinado. (A propósito, o ornitorrinco, assim como o homem, é sui generis: põe ovos amnióticos à maneira dos répteis, amamenta as crias como os mamíferos, tem um bico córneo semelhante ao das aves – bico de pato – e, do mesmo jeito que alguns anfíbios, excreta veneno.)
______________Crônica publicada no jornal Diário do Nordeste em 27/03/2011.
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