Conto 1: Cavalos de Troia
Percebendo o discurso como constituído da relação entre diferentes formações discursivas (FDs), as quais entram em contato através de um mecanismo polêmico baseado na controvérsia, na disputa entre as FDs (Maingueneau, 1997), o texto de Nilto Maciel explora o diálogo entre o passado e a modernidade. Relação, esta, identificada como interdiscurso.
No texto, a tranquilidade de uma pequena cidade brasileira, caracterizada pela vida rural, onde animais e pessoas compartilham o mesmo espaço por entre ruas e calçadas, é interrompida com a “invasão de móveis metálicos”. O sujeito do discurso nos transporta para uma época que o mesmo não menciona explicitamente, mas que suponhamos esteja compreendida entre os últimos anos de 1950 e a década de 60. Sabemos disso devido algumas pistas deixadas no próprio texto: dois automóveis em um cortejo “garboso, solene, sorridente” desfilam pela cidade causando um grande alvoroço na população e possibilitando que as pessoas nos cafés da cidade não parem “de falar na riqueza e no luxo do filho de Daniel Montefusco” e não se interessem mais pelos “novos filmes de Buffalo Bill”. No final do texto dois cadilacs são abandonados diante da casa de Daniel Montefusco, o que nos leva a associar que os automóveis em desfile pela cidade eram cadilacs e que pertenciam ao filho de Montefusco. Ora, o filme Buffalo Bill, que conta a vida do legendário aventureiro Buffalo Bill, é de 1944 e a marca Cadilac teve seu apogeu no final dos anos 50 e seu declínio na década de 60 com a febre dos carros de design “muscle cars”. Logo, é natural o desinteresse do público pelos filmes de Buffalo Bill uma década depois, a qual coincide com os anos dourados do cadilac, que, por sua vez, também é deixado de lado.
A estupefação do povo com o desfile dos automóveis extrapola a simples surpresa e atingem níveis de espanto, medo e pavor. A começar pelo locutor do alto-falante que, de tão espantado e não tendo outro nome para designar os carros, anuncia que “Nossa cidade está sendo invadida por móveis metálicos...” e acaba se engasgando com as próprias palavras. Nas ruas, as pessoas observam receosas e acabam, juntamente com as carroças puxadas por burros e com a presença de outros animais, instalando um pequeno tumulto. Embora depois de algum tempo a tranquilidade volte, as pessoas não continuam as mesmas e refletem as mudanças trazidas pela modernidade.
De um lado temos o passado representado pela vida campestre, pela presença dos animais, pelos meninos jogando bolas de meia nas ruas. Em “De novidade, só missas em latim e sermões gritados contra o progresso e a máquina”, temos o enunciado mais representativo dessa formação discursiva, em que o sujeito do discurso retoma uma prática católica há muito em desuso nas cidades brasileiras para enfatizar essa posição discursiva ideológica contra os avanços tecnológicos e modernos. O passado é visto como algo benéfico, positivo, o que nos permite classificá-lo como tendo um valor eufórico; em contraposição, a modernidade, que, apesar de trazer o progresso material, “invade” a vida das pessoas e quebra os valores, instalando um mal-estar característico do homem moderno.
A religiosidade como um dos pilares do mundo antigo é questionada e posteriormente negligenciada pelas novas descobertas e inovações científicas. É assim que entendemos quando o sujeito do discurso coloca no parágrafo seis a religião católica de um lado e a violação de seus valores e dogmas de outro. Ao mesmo tempo em que a Ave-maria é entoada no rádio contam-se histórias de aventuras e “fotografias escandalosas” com imagens profanas. As mulheres perdem a virgindade com homens casados que têm como devota Santa Luzia, bem como com aquele que simboliza no texto, o portador da modernidade: Daniel Montefusco.
Outro ponto interessante a ser debatido diz respeito ao título do conto. Ao optar por “Cavalos de Troia”, o sujeito do discurso se utiliza da intertextualidade para mostrar sua postura discursiva dentro do texto. No poema épico Ilíada, Homero conta a guerra entre gregos e troianos desencadeada a partir do “rapto” de Helena, mulher de Menelau (um dos reis gregos), pelo príncipe troiano Páris. Depois de longos anos de batalhas, os gregos definitivamente não conseguem ultrapassar os muros que protege a cidade de Troia. Não tendo outra saída, o sábio Ulisses tem a ideia de presentear os troianos com um enorme cavalo de madeira construído a partir de algumas embarcações gregas. Ao verem o cavalo na praia, os troianos interpretam como sendo um presente simbolizando o fim da guerra e a rendição dos gregos. O cavalo é levado para a cidade e transpõe a muralha em meio ao júbilo da população que começa, então, a festejar com muita dança e bebida. Não sabiam os troianos que o cavalo era oco e que dentro estavam os melhores guerreiros gregos, inclusive Aquiles, o melhor entre todos. À noite, quando todos da cidade dormiam depois de muita festa, os gregos saem do cavalo e, só então, conseguem derrotar os troianos.
Utilizando-se dessa estratégia discursiva, o sujeito do discurso faz um paralelo entre o “cavalo de Troia” e os carros modernos, em que estes são interpretados assim como o cavalo grego presenteado aos troianos: em um primeiro momento, um presente, uma dádiva; depois, a própria destruição. O carro simboliza no texto o objeto máximo da modernidade, portador das maravilhas do progresso e, implicitamente, responsável pelos distúrbios e angústias psicológicas do homem moderno. O último capítulo do texto sintetiza bem as consequências advindas da modernidade: “a cidade se encheu de outras novidades” como resultado as perturbações psicológicas e emocionais, como crise existencial e alterações de comportamento, tornam-se mais frequentes e ativas entre a população.
Dessa forma, o interdiscurso se manifesta no texto pela oposição entre passado e modernidade, os quais interagem polemicamente num processo dialógico na construção do sentido. Ocorre uma disputa entre as FDs na qual uma tenta desqualificar a outra, uma vez que ambas pertencem ao mesmo campo discursivo (Maingueneau, 1997). O passado é afirmado como um valor positivo (eufórico), enquanto a modernidade é desqualificada e consequentemente negada, recebendo, assim, uma classificação disfórica.
Conto 2: As Pequenas Testemunhas
O texto é a unidade de sentido máxima da linguagem e comporta em seu interior múltiplas relações interdiscursivas que interagem através de um mecanismo polêmico baseado na controvérsia na tarefa de constituir o discurso. A construção do discurso de um texto está, assim, dependente da disputa entre diversas formações discursivas (FDs) que ocorre em seu interior (MAINGUENEAU, 1997). Logo, todo texto é por natureza heterogêneo.
No texto de Nilto Maciel, essa heterogeneidade se manifesta pelo confronto entre a liberdade caracterizada nas garotinhas que buscam o conhecimento, a verdade sobre os fatos nem que para isso tenham que ariscar as próprias vidas; e a censura, personificada na figura da professora, a qual detém o poder sobre as mesmas e de todas as formas tenta mantê-las afastadas da verdade.
O sujeito do discurso nos leva para uma realidade recente da história política brasileira: a Ditadura Militar. Período sombrio da história do país, marcado pela falta de liberdade do povo de expressar suas opiniões, ideias, comportamentos e, consequentemente, produzir conhecimento. Aqueles que se interpunham no caminho do governo, reivindicando seus direitos de cidadão e denunciando as atrocidades da Ditadura, eram imediatamente calados. Para isso, o governo mantinha bases de concentração onde a tortura “era pouca” e o preço da liberdade era pago com a própria vida. Esse contexto sócio-histórico é transportado para dentro do texto, onde passamos a acompanhar a trajetória de algumas pequenas alunas na busca de conhecer a triste realidade da qual fazem parte.
Em um primeiro momento, somos informados de algumas características da escola e de seu cotidiano. O estabelecimento de ensino localiza-se em uma região isolada, pouco frequentada e onde aparentemente não há outras edificações em volta. O trabalho conjunto entre escola e comunidade não existe: as alunas são trazidas de outras localidades, uma vez que as mesmas não conhecem os arredores da escola, como também não podem ultrapassar as imediações das salas de aula. A professora age de forma autoritária e priva as alunas de conhecerem a realidade que presenciam todos os dias. Assim, temos uma escola que funciona como uma verdadeira “prisão” para essas pequenas crianças.
A busca por conhecer a realidade da qual participam cotidianamente torna-se objetivo primordial para as alunas, as quais têm “ânsia de conhecer aquilo tudo”, representado pela triste passagem diária, em frente à escola, de alguns homens algemados sendo conduzidos por soldados “em direção ao campo”. A partir de então, as crianças procuram respostas para suas dúvidas com relação a essa cena que se repete diariamente diante de seus olhos. A professora, que eventualmente seria a responsável por responder e esclarecer as dúvidas das alunas, simplesmente procura distorcer ou amenizar a situação com declarações diretas e concisas, porém fáceis de serem questionadas, o que leva as crianças a buscarem cada vez mais a verdade sobre os fatos. A cena que as crianças observam todos os dias da escola é sempre posteriormente agravada com o barulho de estampidos, o que faz com que se assustem e fiquem ainda mais intrigadas.
Sem esperança que a professora possa de fato responder aos acontecimentos, as alunas vão direto ao objeto de estudo e constatam o que temiam: ao seguirem a trilha percorrida pelos soldados e presos, tiros são disparados, o que leva algumas meninas ao desespero e, consequentemente, pensarem na morte (“Eles vão nos matar”). A constatação é reforçada com o enunciado que talvez seja o mais representativo da formação discursiva de censura: quando a professora, fora de si, descontrolada, põe-se a gritar “É tudo mentira; vocês não viram nada disso; aqui ninguém mata ninguém” – e realmente não é ninguém que mata ninguém, mas alguém que mata outro alguém. Com esse ato, a professora defende sua postura dentro do texto e age simplesmente na tentativa de negar todo e qualquer discurso que lhe interponha o caminho, desqualificando-o de várias formais.
Embora percebamos, não de maneira explícita, que o sujeito do discurso se posiciona contra a censura e a favor da liberdade, o final do texto é negativo: mesmo as crianças tendo alcançado o objetivo de saberem para onde eram levados aqueles homens algemados, essa constatação foi parcial e não contribuiu para alterar ou interromper a continuidade dos acontecimentos; a censura ganha mais corpo e se materializa na construção do muro em volta da escola.
Assim, a identidade discursiva do texto se constrói por meio da oposição entre liberdade vs censura. Ambas dialogam polemicamente, uma tentando desqualificar a outra, justamente porque pertencem ao mesmo campo discursivo (MAINGUENEAU, 1997) e acabam por determinar a composição dos dizeres no texto.
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MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. 3ª ed. Campinas, SP: Pontes, 1997.
*Aluno do curso de Letras da Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA.
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