(Transcrito do blog Gaveta do Ivo - Poesia & Tradução)
Carlos Trigueiro começou a ser notado como um dos nossos melhores contistas quando publicou, em 1994, 0 Clube dos Feios e Outras Histórias Extraordinárias, surpreendendo a crítica tupiniquim. Dominada até hoje por equívocos minimalistas, pornográficos ou ambivalentes, a contística nacional dava de frente com esse estreante “castiço” que sabia contar uma história em linguagem legível e com toda a maleabilidade histriônica que o gênero requer. E os contos – desse e de seus livros posteriores –, além do sabor natural da narrativa fluente, das frases de efeito (e até mesmo de algumas pedras de toque), comprometiam-se com um ideário e reflexões conjugados a uma fina ironia, os grandes trunfos da escola imune ao tempo de que Machado de Assis é o guru inconteste.
O livro conseguiu atrair a atenção de alguns editores versáteis e de olho clínico para os talentos emergentes, e já o seguinte, 0 Livro dos Ciúmes, de 1999, encontrava excelente receptìvidade junto à crítica e, em especial, ao público leitor. Nele, o autor aliava às suas qualidades de escritor maduro uma variegada fabulação, denotativa de sua intimidade com a literatura universal e de sua experiência de muitos anos com a cultura de outros povos. Se no primeiro livro os contos giravam em torno da temática da feiúra, nesse era a vez de o ciúme ser analisado em seus vários aspectos e manifestações. Mas, no fundo, o problema era sempre o do corte visceral das misérias humanas, conforme sacou seu autor: uma feiúra estética no primeiro caso, uma feiúra sentimental no segundo. Faltava o tripé da trilogia; impunha-se escalpelar a feiúra social e política – e foi isto o que o autor fez neste O Livro dos Desmandamentos, que é uma mescla de ensaio, teatro mambembe, romance de cordel. Vazado num estilo que não faz concessões ao vulgar, esta frenética fabulação se desdobra em crítica pungente à nossa história política atual, a seus antecedentes e desdobramentos futuros. Trigueiro lança mão de uma espécie de flash forward em que antecipa ações que vão acontecer para os personagens, mas que para o leitor são eventos já vividos, observados a posteriori; só que o autor os analisa como objetos de crítica social e política, expondo-os à galhofa e ao sarcasmo, já que não pode impedir que aconteçam nem sequer modificá-los, passando a vida a limpo. Enfim, um livro dentro do livro, em que, graças a uma engenhosa arquitetura, o autor sobrepõe à narrativa picaresca todo um aparato socioanalítico que esmiúça as nossas esperanças do passado que se foram transformando em desilusões do presente.
É curioso saber que Trigueiro estreou com um livro de memórias, escrito na década de `80, quando integrava a agência do Banco do Brasil em Madrid e presenciou a euforia dos espanhois recém libertados da ditadura franquista. No entanto, suas “Memórias da Liberdade”, que ele viria, em boa hora, rever e reeditar em 2008, não se prendem a esse fato histórico, nem à análise de seus antecedentes ou consequências; o momento serviu provavelmente como deflagrador de lembranças de um “tempo de liberdade”, ou seja, dos tempos soltos de sua infância amazonense. Como diz Victor Giudice nas orelhas do livro: “Outra característica não menos importante em que se firmam estas Memórias é a visão paradoxal do autor com referência a certas verdades tradicionais, entre elas a propalada falta de liberdade ocorrida na infância. Para Trigueiro, a liberdade, tal como a desejamos, só existe no período em que o pensamento ainda não sofreu as deformações provocadas pela repressão institucional, centralizadas principalmente no sentido da posse material”. Mas, saiba o leitor, essas memórias não são simples lembranças, meras evocações do tempo de menino. A realidade surge aqui filtrada (ou amplificada) pela artesania literária do autor, sua técnica de condução novelística dos acontecimentos, a riqueza e exuberância de um vocabulário onde palavras regionais e recendentes de seiva passam boiando ao longo das frases como “os ariacós, biquaras e sargaços na corrente do rio”. Para além do território da infância, acompanhamos o autor em sua migração para o Nordeste, quando viveu boa parte de sua juventude em Fortaleza, por ele considerada sua segunda terra natal. Uma das engenhosidades literárias deste livro é que Trigueiro não apenas narra as ocorrências, mas consegue transmitir ao leitor a sensação do deslocamento, o som, o cheiro, as cores, a vida enfim de sua nova ambiência. O mesmo ocorre em relação à terceira etapa, sua vinda para o Rio, a vida estudantil, as incertezas do amor e a aventura do primeiro emprego. Um grande livro, sem dúvida, mas um livro que não é bem o “romance de formação” dos termos tradicionais, em que os relatos assinalam as etapas vividas pelo autor em seu desenvolvimento literário. Segundo o vejo, está mais para um “romance de transformação”, pela revisão, o aproveitamento das experiências passadas no aprimoramento das vivências presentes, como se lhe fosse dado o privilégio de passar a vida a limpo.
Seu próximo livro, “Libido aos pedaços”, sairá em breve pela Record e é o segundo volume de sua trilogia iniciada com “Confissões de um anjo da guarda”.
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