“SE FOSSE ETERNA, JAMAIS ESCREVERIA”
(Marcia Barbieri)
Conversei com Marcia Barbieri por correio eletrônico. Eu em Fortaleza, ela em São Paulo. Não nos conhecemos pessoalmente. Marcia Barbieri é paulista. Formada em Português/Francês pela UNESP, pós-graduanda em Prática de Criação Literária, organizado pelo escritor Nelson de Oliveira. Tem textos publicados nas revistas literárias Coyote, Polichinello, Cronópios, Germina, Escritoras Suicidas, O Bule e Meio Tom. Lançou em 2009 o livro de contos Anéis de Saturno, pelo Clube de Autores. Lançará em julho um livro de contos intitulado As mãos mirradas de Deus, pela editora Multifoco. É colunista das revistas literárias eletrônicas O Bule e Sinestesia Cultural. Foi colunista da revista eletrônica Caos e Letras. Edita o blog: A Vida Não Vale Um Conto E-mail: marcia_barbieri@hotmail.com
A ENTREVISTA
NM – Apesar das imensas dificuldades de se publicar livro no Brasil, você se sente com disposição para buscar lugar de destaque na cena literária? Falo em leitores. Ou a publicação na Internet a satisfaz?
MB – A dificuldade em publicar é muito grande. Como provar seu valor literário? Claro que sempre temos a opção das produções independentes ou semi-independentes. Até um lugar apropriado para o lançamento é difícil. Isso porque, em tese, temos vários centros culturais de incentivo à Cultura e vários "personagens empenhados" em apoiar os novos escritores. Eu ainda não consigo enxergar como o livro impresso possa me trazer um número maior de leitores. Acho que isso só ocorreria se eu publicasse por uma grande editora. A publicação na internet me trouxe muitos leitores e leitores competentes, com quem posso dialogar. Isso me satisfaz. A publicação em papel é puro fetiche. Não acredito que ela possa ampliar o número de leitores. Considero um lugar de destaque na cena literária continuar escrevendo, escrevendo, aperfeiçoando, procurando minha voz. O resto é só vaidade. Existe pretensão maior do que o desejo de ser lida e entendida em um mundo rápido e caótico como o nosso?
NM – O que leva um escritor ao catálogo das grandes editoras? Será sorte? Será talento? Não será o próprio mercado, essa entidade tão estranha aos que nela não estão postos? Você escreveria para o mercado, para ser lida, relida, comentada, ovacionada, endeusada? O que o mercado quer? Serão virgens para sacrifício, como na lenda?
MB – Ainda não descobri o que leva um escritor ao catálogo das grandes editoras. Creio que não seja o talento, pois vemos pessoas medíocres ganhando jabutis, enquanto outros talentosos nem posam pra fotos. Acredito na sorte. No entanto, a politicagem é muito grande, talvez maior que a sorte. Eu diria que o mercado faz o escritor e também faz o leitor, o qual é corrompido e nem sequer percebe. Eu jamais escreveria para me encaixar no mercado. Mas, sendo humana e vaidosa, se uma grande editora me comprasse, provavelmente me venderia. Afinal, é difícil essa vida de ser escritora de fim de semana. Uma coisa, porém, acho incontestável e a história da arte nos prova o tempo todo: o artista não precisa de ninguém pra ser genial.
NM – E esta nova literatura, feita de sangue, é mercadoria de boa venda? O povo gosta disso? O povo gosta de axé, hip-hop, esse forró que inunda nossos ouvidos, sacanagem, baixaria? Será que estamos sendo elitistas, brancos, europeizados?
MB – Para ser sincera, não acredito que essa literatura feita de sangue seja uma boa mercadoria de venda. Aliás, acredito que nenhuma literatura de qualidade seja aceita por um público grande. A maioria das pessoas que eu conheço e que gostam de "alta literatura" também gostam de fazer literatura. A impressão é que seremos lidos apenas pelos nossos pares. O movimento do hip-hop é legítimo e muito interessante. Embora eu não domine o assunto, acho incríveis as letras e os protestos dos Racionais MC's. Às vezes, quando escuto, tenho até vergonha dos meus versos. E, trabalhando como educadora, o que posso afirmar é que o povo vive tão absorvido na luta diária da sobrevivência que a Arte é um artigo de luxo totalmente dispensável e elitista.
NM – Os escritores em formação devem ler muito os clássicos, sem deixar de lado os contemporâneos, os novos. Quem são os seus clássicos preferidos? De que você mais gosta na nova geração? Da ousadia na linguagem, mais próxima do coloquial, do narrativo e do descritivo, caracterizada como neorealismo urbano? Parece-me que há um distanciamento nesses narradores “mais realistas” do que chamamos de “psicologia dos personagens”, ou seja, um apego à ação (o fato, o episódio, o enredo) em detrimento da angústia, do inferno interior.
MB – Eu gosto muito de Miguel de Cervantes, Gógol, Kafka, Dostoievski, Guimarães Rosa, Emily Brontë, Albert Camus, Saramago, Gabriel García Márquez, Yasunari Kawabata. O que mais gosto na nova geração é a ousadia na linguagem, na estrutura narrativa. O que mais me impressiona em uma obra, clássica ou contemporânea, é a capacidade de sensibilizar e não existe nada mais tocante do que a condição humana, tão fora de moda... A ação, a narração, o enredo não me prendem; o que me arrebata são as sutilezas. O que me entristece um pouco é que muitos autores dessa nova geração estão escrevendo "manuais técnicos", estão abolindo a psicologia dos personagens e as metáforas. Estou lendo "Mil tsurus" do Kawabata. Ele utilizou uma imagem que valeria mil histórias: "uma revoada de tsurus brancos". A arte, em minha opinião, se resume nessa imagem. Eu gostaria de encontrar na minha literatura uma revoada de tsurus brancos.
NM – Como você faz a captação de ideias para os contos? Como surgem em você? Prefere sair por aí catando personagens e situações ou eles aparecem de inopino? Parece-me que a maioria dos novos escritores brasileiros se imagina repórter.
MB – Não gosto muito de repórter. Não sou eu que capto as situações e os personagens, são eles que me arrebatam. Às vezes, um dedo, uma árvore me comovem, me perseguem. A maioria dos meus contos começa porque me apareceu uma frase ou um bom personagem, como no texto "As mãos mirradas de Deus". Escrevi porque um conhecido pregava e citava sobre o homem bíblico da mão mirrada. Com "Sangria nos meus olhos mortos" aconteceu o mesmo: vi uma figueira e apareceu a frase "começo o árduo trabalho de ensacar os figos". Outras vezes é apenas uma metáfora procurando morada...
NM – De onde vem a arte, o lampejo, a centelha? Dizem que é preciso muita transpiração em vez de inspiração, muita dedicação, muito trabalho. Não acredito nisso. Porque arte não é trabalho. Você acha que vem da memória adquirida? Ou da memória ancestral, aquela que trazemos no sangue?
MB – Heidegger diz que para se ouvir um puro ruído temos que afastar das coisas o escutar, distanciar delas o nosso ouvido, ou seja, escutar abstratamente. Encaro o artista dessa forma, saber escutar, ter sensibilidade para escutar esse ruído. Caso contrário, será mesmo só um trabalho burocrata como qualquer outro. Também concordo com Cortázar, quando afirma que vivendo chega a dissimular uma participação parcial em sua circunstância. Por outro lado, diz não poder negá-la no que escreve, uma vez que precisamente escreve por não estar ou estar a meias. Considero que a minha vida e a minha vida-escrita é uma coisa só, mesmo sendo tão diversa. E vida envolve memória imediata, adquirida, coletiva...
NM – No momento do escrever, o escritor pensa, em certo sentido, no leitor, razão pela qual escreve para ser entendido. Imagina-se o leitor (e é) de si mesmo, testa-se e diz: “Assim está bom”. Ou “assim não dá para entender”. Muitas vezes, quer mesmo não ser logo entendido: “Preciso me esconder um pouco”. É quando inventa metáforas e parábolas. Com você, é assim também?
MB – Sou apaixonada por metáforas, gosto dessa reinvenção de significados, tirar as palavras da obscuridade, do sentido vulgar e torná-las novamente cortantes. Nunca crio metáforas ou parábolas com a intenção de me camuflar. Como disse antes, sou feita da mesma matéria da Literatura. Minha ficção serve muito mais para me expor do que para me esconder. Em relação ao leitor, sou leitora de mim mesma. Sendo humana e tão comum, com certeza minha obra atravessa outras almas. Não procuro avidamente pelos leitores, a não ser por pura vaidade. Cada obra encontrará a seu tempo o seu leitor.
NM – Você escreve todo dia? Ou é preguiçosa? Depois de Anéis de Saturno, agora é a vez de As mãos mirradas de Deus. Fale um pouco de cada um, das semelhanças ou diferenças entre eles.
MB – Eu gostaria de um dia alcançar essa disciplina. Eu acordo e durmo pensando em Literatura. No entanto, acho muito difícil escrever sem ter o que você chamou de centelha criativa. Eu tive certa disciplina, durante dois meses, enquanto estava escrevendo um romance. E pretendo, a partir de julho, começar outro romance, com essa mesma disciplina. Com os contos funciona bem diferente: espero a coisa fermentar e depois escrevo, sem muita pressão. Anéis de Saturno é um livro com uma estrutura mais linear. Os contos são maiores, menos ousados. Já existe uma preocupação com as imagens, com as metáforas. No entanto, acredito que As mãos mirradas de Deus tem um mergulho maior na linguagem, os textos são mais sintéticos, as imagens falam mais sobre os personagens do que os diálogos ou a narrativa. O intuito não é contar a história, mas que a história seja sentida.
NM – Fale um pouco dos seus romances. Quem são os narradores? E os protagonistas? O que você pretende com eles? Chocar o leitor? Dar choque em você mesma?
MB – Tenho só dois romances escritos. O primeiro nem digitei, está muito ruim. O segundo tem dois narradores. A maior parte do livro é narrada por uma mulher ciumenta, raivosa e histérica, e a parte final pelo seu parceiro. Há uma parte dela que sou eu e uma parte que é o avesso de mim. Como disse antes, acabo me diluindo na literatura. O intuito principal, quando escrevi o livro, era brincar com a dubiedade das palavras; o que está sendo dito é literal ou é metafórico? Uma tentativa de brincar com o leitor. Acho que consegui; as poucas pessoas que leram não descobriram até o final do romance uma característica importante da protagonista. Não posso contar, senão estraga a surpresa. Estou começando outro romance, mas ainda estou esperando a história se misturar comigo e também me desvencilhar do último romance.
NM – O que você pretende com literatura? Ganhar dinheiro, ser famosa, virar estátua em praça pública, fazer parte da história?
MB – Ganhar dinheiro está fora de cogitação. Não preciso de muito dinheiro pra ser feliz. Além do mais, não sou tão ingênua, a ponto de imaginar que Literatura dá lucro. A fama é passageira e me lembra Big Brother. Como não sou nem um pouco modesta, adoraria ficar pra história. A Literatura é uma espécie de perpetuação. Muitas pessoas se apavoram com a ideia da morte. Eu não me apavoro, porque tenho a ilusão de que a Literatura ficará para me representar. Desconfio de que, se fosse eterna, jamais escreveria.
Fortaleza/São Paulo, maio/junho de 2011.
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