Apesar de a literatura, seja ela oral ou escrita, ter se originado da necessidade de um homem contar a outros o não-visto, o não-ouvido, o não-sabido, o não-sentido, o não-explicável ou o inexplicável, demorou muito até os estudiosos se debruçarem sobre a literatura do mistério, do estranho, do ilógico, do irracional, e a aceitarem como uma das vertentes da arte. Antes de Todorov, ninguém se ocupou tanto dela. Ninguém se preocupou em lhe dar nome certo: literatura fantástica. Nos compêndios de história liam-se apenas expressões como “fulano tem imaginação prodigiosa”, “sicrano vai da fantasia mais pueril ao...”. Passados anos e estudos, a literatura fantástica ainda é vista com certo desdém. Como o são a literatura policial, a literatura erótica, a literatura infantil e outras.
Esse tipo de literatura teve e tem cultores no Ceará. Porém, a maior parte desse acervo se encontra desaparecida, imersa na poeira dos séculos ou mesmo nas prateleiras mais inatingíveis de bibliotecas de outros mundos, como a de Babel, Alexandria e New York. Incansável, obstinado vampiro de antiguidades, o neopesquisador Pedro Salgueiro (também praticante do fantástico) se deu a missão de vasculhar o passado impresso (livros, revistas, jornais), à cata de obras fora do realismo, para compor este O cravo roxo do diabo. Porque, na verdade, só existem duas categorias de literatura: a realista e a não-realista ou fantástica. Não satisfeito com o que encontrou nas bibliotecas públicas de Fortaleza, empreendeu viagens aos mais distantes porões da memória. Certamente não encontrou tudo, porque tesouros estão bem enterrados e muitos talvez nunca sejam localizados. Descobriu poemas, contos, crônicas e romances que vão do absurdo mais arrepiante à irracionalidade mais contagiante. Para realizar tal tarefa de escafandrista do além, contou com a colaboração de dois pesquisadores vindos da pré-história (obviamente, estou falando de livros): Sânzio de Azevedo, que conhece tudo de literatura, e Alves de Aquino, o Poeta de Meia-Tigela, misto de sapiência e poesia.
Alguns nomes muito conhecidos podem ser lembrados aqui como cultores do fantástico no Ceará. Como o de Oliveira Paiva, cujos contos estamparam-se em jornais quase todos em 1887, reunindo-se em livro somente em 1976. Um deles – O Ar do Vento, Ave-Maria! – “é uma narrativa fantástica, ao mesmo tempo regionalista e folclórica, em que figura uma burra sem cabeça, ou burra de padre”, esclarece Sânzio de Azevedo na apresentação do livro.
Entre 1855 e 1908 viveu Emília Freitas, autora do primeiro romance fantástico da Literatura Brasileira. Publicado em 1899, A Rainha do Ignoto só foi redescoberto recentemente, pelo pesquisador e crítico Otacílio Colares, que escreveu o prefácio da 2ª edição, datada de 1980. A obra apresenta-se “com os apelos ao imponderável, por facilidade de alguns acoimado de espírita, quando mais não foi, nas intenções de sua autora, que uma fuga propositada ao passado, ao que se convencionou denominar – romance gótico, embora partindo do regional mais autêntico.”
Nos meados do século XX, surgiu entre nós outro cultor do fantástico: Moreira Campos. No artigo “Afinal, os cães veem coisas?”, Linhares Filho pergunta: "Qual a razão do interesse maior do fantástico em Moreira Campos, se tal categoria não constitui uma constante do escritor?” E responde: “Justamente o fato de, sendo ele um autor neo-realista às vezes, outras vezes neo-naturalista, apresentar-se cioso da verossimilhança, adotando, nos raros contos em que abriga o fantástico, uma postura que mais se inclina para o estranho do que para o maravilhoso”.
Depois vieram José Alcides Pinto, o criador de dragões e demônios; Juarez Barroso, o adestrador de cururus e cavalos; Airton Monte e seus loucos; Carlos Emílio e suas viagens intermináveis; Gilmar de Carvalho e os tipos do sertão e da cidade; Nilto Maciel; e agora o pessoal mais novo, como Tércia Montenegro, Jorge Pieiro, Dimas Carvalho, Pedro Salgueiro e outros.
A literatura fantástica seria muito mais rica, se a humanidade tivesse conhecido a escrita há mais tempo. Assim, teríamos relatos ou histórias de nossos ancestrais de cinco, dez, vinte mil anos atrás. De animais desaparecidos, criaturas monstruosas, seres humanos perdidos nas matas da Chapada do Araripe, das serras da Ibiapaba, Meruoca, Uruburetama, Maranguape, Maciço de Baturité. Cabe a nós, herdeiros da memória de nossos antepassados, a recriação daqueles mundos.
O cravo roxo do diabo é um volumoso compêndio do que se pode chamar pelo nome de fantástico. Não se tem notícia de obra tão abrangente no Ceará e mesmo no Brasil. Coletâneas de contos fantásticos há muitas. No entanto, nesta coleção há muito mais do que narrativas curtas de mistério, horror, espanto. Salgueiro arrancou do fundo da terra – como um coveiro imortal, sempre a cavar o chão, embora enterre os mortos (seria melhor dizê-lo, pois, arqueólogo) – peças literárias (nem sempre douradas) criadas pela banda sórdida da imaginação humana.
Fortaleza, maio de 2011
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