O “Gado de Deus”, de Valdivino Braz, pode ser considerado uma das referências insignes do romance brasileiro
A pertinácia escritural de Valdivino Braz é um cenário de incontido jorro fervilhante e contínuo de galopes fráseos, de lépidos e desvairados petardos estruturais, linguísticos; enfim, um perfilamento e culminação de um remodelismo conjuntivo de décadas literárias. A prosa, com “Cavaleiro do Sol” (1977), e a poesia, “As Faces da Faca” (1978), ressentem-se do assanho impactador de neófito que assoma os horizontes deslumbrantes e irresistíveis da criação literária, mas ainda subjugado pelo imediatismo das temáticas e das influências de autores impregnantes e irresistíveis (como João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Lêdo Ivo.) que ainda não revelam aquele seu futuro buril raiado que ele instauraria nas publicações posteriores, fantasticamente aguçado, lépido, mordaz, joyceano. Contudo, não se pode negligenciar, além da perpetrante capa de Laerte Araújo para “Cavaleiro do Sol” (ele que sempre acrescenta arte à estetização dos autores), a presença de alvissareiro embrião de forte lampejo estilístico já literariamente representativo nos contos “A Face Oculta da Maldade”, “Que se Passa com Joana?” e “Cavaleiro do Sol”. Nestes, a dotação de linguagem, ao manejar o tema, se lhes cai bem.
Com a forma (estilização), com a fôrma (a palavra, a frase), com a temática múltipla e inumerável, expressando-se por um modelismo inesgotável como arrepanhamento, intertextuação, intertextualidade, realismo mágico, criptografia, etc., Valdivino Braz faz de “O Gado de Deus” (2009), seu premiado romance, uma plataforma de dúcteis plasmações fráseas de arranque ágil e trepidante, um jogo galhofo, satirista, de efeitos fônicos e signóticos, de diletante efeito malabarista na narração com que a sequência dos topos em profusão provê perfeita e admiravelmente uma ginástica concomitante de imagens e ideias, impondo-nos a impressão de que ele faz do texto, à Joyce e à Faulkner, um boneco de mola que ele malemoleja e ventriloqueia a seu bel-prazer. Irrompe o romance com rupturas estruturais, fazendo o primeiro capítulo (como Josué Montello em “Labirinto de Espelhos”) que começa, assim, o romance no prefácio e daí se solta num ensaísmo literário que arrola as pugnas epistemológicas do universo das letras, da política, da música, etc., etc., e que vai vazando todo o livro.
Contudo, como ocorre na disparada do estouro da boiada, ele, triturando na máquina cinematográfica captadora de painéis da vida e da História, sua estilística liquidificadora e o seu excepcional poder mimetizante de alheias estilísticas intertextualizadas, permite que uma dialética escritural verdadeiramente fantástica se metamorfoseie em intertextualidades com estilos de autores hoje ícones de máxima genialidade na Literatura Universal, como Dante, Eliot, Joyce, Drummond, João Cabral de Melo Neto, João Guimarães Rosa. Sem dúvida, “O Gado de Deus” já pode ser considerado uma das referências insignes do nosso romance (goiano e brasileiro) e até um palatíssimo repasto para degustação internacional.
Superação dos mitos
Tal como já ocorrera com a sua poesia atual, na prosa recente também Valdivino Braz enseja a superação de alguns mitos que mantivera em “O Gado de Deus” e na esteira poética passada. Intenta, daí, a superação de adoções de ícones das fronteiras entre semiótica e linguística e suas crias, alcançando nos contos de “Morcegos Atacam o Vampiro” um retorno a uma linearidade mas que, sob seu vigilante tirocínio de conscientização do alcance estético sempre de acurácia genial, desata a prosa e fá-la escorrer em flexibilíssima e fluídica dialética, jocosa de psicodelismo e avivada de mordacidade espicaçante sobre as eternamente incorrigíveis mazelas da bicharada humana.
No levantamento de moldes estilísticos, não se podem omitir alguns caracteres do senso de obra aberta com que ritualiza seus textos: na fraseologia, a miúdo, as criptografias emergem fazendo o personagem assumir a narrativa, assim roubando-a do narrador (autor), nas páginas 72 e 73; a técnica operatória começa a sessão de cinema, sob um véu de lantejoulado realismo mágico, no conto “O grito dos mutilados” (página 35), em que, além desses tópicos (também presentes em “Devoções de Dona Dalva”), insere-se o ensaísmo literário, e só nele e em Heleno Godoy, este cânone aparece nos contos até então publicados.
Finalmente, entre outras aferições, contos como “A Crespa Flor das Pernas”, “Rio Arrependido”, “A Vingança de Zé Divino”, cuja estilização corre como prata líquida sobre a página, podem muito bem, pela refulgência e esplendor das narrativas, ser alçados ao panteon nacional do mais relevante senso antológico. E Valdivino Braz assim também, pelo conjunto de tão significante literatura no Brasil, na galeria de consagrações universais.
——
* Mário Jorge Bechepeche é médico e crítico literário, autor do livro “O Senso de Obra Aberta na Literatura e o Modelismo Conjuntivo da Atualidade” (1º volume).
/////