(Nirton Venâncio)
Quando vivia em Brasília, quase nunca eu via Nirton. Após o meu regresso ao Ceará, estive com ele duas ou três vezes lá, e outro tanto aqui. Numa das vindas dele, marcamos encontro em hotel à beira-mar, onde se hospedavam cineastas, atores, atrizes, participantes de um festival de cinema aqui. Pus-me a andar pelo hall. Todos os sofás ocupados. Gente de todos os tipos para lá e para cá. Sentia-me um ser estranho. E era. Vontade de sair logo dali, ver pessoas comuns. Recostei-me a uma pilastra. Por que Nirton não aparecia logo? E apareceu. Fizemos as perguntas possíveis e necessárias. Entretanto, não podíamos conversar, tal a algazarra. Por que não vamos tomar uma água de coco? E saímos do hotel. Atravessamos a avenida e nos sentamos em cadeiras de uma barraca. Nirton se disse cansado e solitário. E com saudades do Ceará. Quero voltar, Nilto. Chupei o líquido do coco e vaticinei: Você não voltará. Ele se assustou e, como se o acusassem de crime hediondo, se defendeu: Preciso voltar. Quero viver o resto da vida aqui. Fui áspero: Não conseguirá. Por quê? Porque tem filhos. São crianças, sim, mas têm raízes, amigos. E, quando crescerem, serão pais. Isto é, você será avô. Estará irremediavelmente preso à terra onde eles nasceram e cresceram.
Não me lembro de quando o conheci. Deve ter sido um pouco antes da criação da revista O Saco. No final de 77, mudei-me para Brasília. Reencontrei-o dois anos depois, em Fortaleza, quando se formava o grupo Siriará de Literatura. Ele cursava Letras na UECE (Universidade Estadual do Ceará), publicava poemas em jornais e revistas, principalmente na página de Rogaciano Leite Filho, no jornal O Povo. Logo depois ganhou o 1º Prêmio Filgueiras Lima de Poesia, com os originais de Roteiro dos pássaros, publicado a seguir.
Durante anos seguidos, passei férias em Fortaleza. Convidavam-me, todas as noites, para bebedeiras e conversas intermináveis. Encontrávamo-nos no famoso Estoril. Muita bebida, todos a falar ao mesmo tempo, garotas à cata de aventuras, poetas muito vaidosos, algumas rusgas verbais, tramas por debaixo das mesas. E Nirton de máquina fotográfica em punho, a registrar tudo, sempre a sorrir, lúcido (bebia um pouquinho só), atento ao menor ruído, a um piscar de olhos, a movimento lento de mão. Características de quem é apaixonado por cinema.
Passavam-se os anos, eu continuava a visitar a capital cearense nos janeiros. Num deles, notei a ausência de Nirton no Estoril. Terá morrido? Carlos Emílio brincava: Deve ter ido para a Lua. Cutuquei Floriano Martins: Você sabe do Nirton? Gargalhou, puxou a ponta do meu bigode e sentenciou: Refugiou-se no Planalto Central. Era verdade: em 86 mudou-se para Brasília. E aquela notícia soou como se me falassem em degredo na África. Agora, sim, nunca mais verei meu amigo. Dito e feito: durante 16 anos deixei de ver Nirton. Pois em Brasília as pessoas não se veem, não se tocam, não se falam, sobretudo se forem amigos. Certa manhã, encontrei (tomei grande susto) o escritor gaúcho Lourenço Cazarré no saguão do prédio onde eu morava. Éramos amigos há muitos anos. Intrigado, perguntei: Que fazes aqui? Moro no quinto andar. Desde quando? Faz dois anos. Sorri e tentei abraçá-lo: Eu também moro aqui. Desde quando? Faz três anos. Ele tentou escapar do assédio e escorregou no rumo dos carros. Segui-lhe os passos. Pois vá ao meu apartamento hoje ou amanhã. Quero lhe mostrar uns continhos inéditos. Fica no sexto andar. Ele ainda brincou: Então és tu, fauno senil, o monstro que não me deixa dormir? Senti-me ofendido. Que significava aquela frase? Se quiseres, poderei te visitar hoje à noite. Ele deslizou mais para o canto da parede. Não, não precisa. Ou então poderemos marcar um churrasco para o fim de semana, no Parque. Ele parecia cada vez mais espantado: Um churrasco? Sim, um churrasco, carne de boi ou de vaca, muito sal, cervejinha gelada ou, quem sabe, chimarrão. Pôs-se a correr, enquanto gritava: Vamos combinar o seguinte, Nilto. Quando você quiser se comunicar comigo, escreva um bilhetinho e ponha naquela caixinha de correio (e apontou para um quadro de madeira embutido na parede).
Bastou regressar ao Ceará (setembro de 2002), para eu e Nirton nos encontrarmos, pelo menos, uma vez por ano. Como vão os filmes? E ele passa horas a falar do curta que pretende realizar. Gostei muito do conto “As pequenas testemunhas”. Não sei se seria possível transformá-lo em película. Há algumas dificuldades: as personagens são crianças do sexo feminino num colégio. Estou pensando em transformá-las em meninos. Faça isso, Nirton. Nas sociedades humanas (acho que desde as mais primitivas), meninas são como vaquinhas sagradas: intocáveis. Meninos servem para tudo: para pedir esmola, assaltar senhoras e senhores, virar homem (ou mulher), matar cachorro ou gato na rua, jogar pedra em doido, ser ator de filme infantil. Mas Nirton não tem nada a ver com isso. Segue o próprio roteiro. Ou o roteiro dos pássaros.
Fortaleza, maio de 2011.
/////