Falaram-me de um livro de contos de Adriano Espínola. E ainda disseram, maldosamente: “Todo mundo agora quer ser contista”. Ora, inúmeros grandes poetas também são bons contistas ou romancistas. Até duvido da grandeza de escritor que não seja poeta. Escritor de prosa (ficção ou não) alheio à poesia não passa de contador de histórias ou cronista de fatos e festas. Depois li umas resenhas de Malindrânia (Rio de Janeiro: Topbooks, 2009). A de Aíla Sampaio me deixou perplexo. O que é natural. Intitula-se “Malindrânia: relatos urbanos entre o surrealismo e o fantástico”. Não se trata de resenha, mas de estudo, porque a autora de Os fantásticos mistérios de Lygia (um dos mais fascinantes mergulhos na obra de Lygia Fagundes Teles) não se contenta com passeios à beira do mar: afunda-se nos sete mares e, mais saltos n’água daria, fossem mais fundos os oceanos. Li também o artigo “A perseguição do inatingível”, de Ildásio Tavares – outro poeta (baiano) saboroso –, publicado no caderno Ideias do Jornal do Brasil, de 20/2/2010, pouco antes de seu falecimento (31/10/2010).
Instigado pelas análises de Aíla e Ildásio, expedi carta a Adriano e, sutilmente, lhe pedi um exemplar da citada obra. “Não se apoquente, Nilto, que lhe mandarei uma cópia do bichinho”. E veio assim, com a gentileza e a grandeza do poeta de Praia provisória e outras maravilhas da literatura brasileira: “Ao mestre Nilto Maciel, ficcionista maior, estas narrativas que se passam na sonhada Malindrânia… Com a velha amizade, a admiração e o abraço do Adriano Espínola. Rio, 26/7/2011”.
Pus-me a ler os relatos. Fascinei-me desde o primeiro, “As cordas do mar”. São oito páginas de intensos mergulhos do narrador nas águas vindas do mar e que inundaram as calçadas e edifícios da cidade do Rio de Janeiro numa manhã de delírio ou pura imaginação. Para Ildásio, o contista “surpreende com um clima em que absurdo e surrealismo se misturam a uma percuciente crítica ao caos urbano”. Quando li “O pintor da tribo”, há alguns anos, escrevi esta observação, no artigo “Da crueldade humana”: “A história se passa há muitos anos, ‘muito além daquele tempo e não muito longe do mar bravio’. Veja-se a intertextualidade com a obra máxima de José de Alencar: ‘Verdes mares bravios de minha terra natal’ (início); ‘Além, muito além daquela serra’ (cap. II). Na sua brevidade, toca em dois pontos nevrálgicos da nossa crueldade ancestral (próxima da crueldade dos outros animais): a antropofagia e a eliminação do artista em momentos de crise na sociedade. A crueldade nascida da necessidade de sobrevivência, instintiva, e a crueldade sobre o mais fraco e inútil. O artista, para os chefes tribais (presidentes, banqueiros, latifundiários, etc), é pessoa inútil. (...) ‘ao invés de ir à caça com os demais, costuma passar o dia inteiro, no fundo da caverna, pintando pássaros e animais feridos, estrelas e flechas, falando sozinho e proferindo palavras incompreensíveis’. São os poetas, os pintores, os cantores, etc. Somos nós, enfim”.
Adriano é mestre na arte de intertextualizar. No ensaio de Aíla está a explicação: “Palavra não conhecida no Brasil, senão pelos leitores de Cervantes, Malindrânia é a ilha imaginária, onde o gigante Caraculiambro é vencido pelo pensamento prodigioso de Dom Quixote, personagem emblemático do romance renascentista espanhol homônimo, de autoria de Miguel de Cervantes. Se o fidalgo Dom Quixote, na província da Mancha, de tanto ler histórias de cavaleiros medievais confundiu fantasia e realidade, Adriano, seduzido pelo arcabouço simbólico da obra, que anunciou os impasses da cultura moderna nascente e denunciou o esvaziamento da fantasia e do idealismo num mundo racional, vê-se impelido a também refletir o conflito entre o idealismo e o realismo, a ficção e a realidade num tempo de liquidez de todas as coisas e de valores marcadamente aparenciais”.
Outras intertextualidades se veem na obra de Adriano Espínola, como no microconto “A flecha”, no qual Martim Soares Moreno (estátua?) “acorda” na Avenida Beira-Mar (em Fortaleza) e vê os carros e edifícios (hoje). Sempre esse cruzamento do passado (real ou fictício) com o presente, como assinala Aíla Sampaio.
Há também momentos de pura brincadeira (séria) com outros escritores ou personagens de nossa cultura. No conto “Malindrânia”, aparece, no início da história, o cineasta Lindberg Cariman, que nos lembra o cearense Rosemberg Cariry, que logo desaparece de cena. Em “Fábula do anel”, outra peça maiúscula, o nome do homenageado é apenas reduzido: o poeta Pedro Henrique Saraiva Leão é “renomado cirurgião, escritor e numismata”.
Malindrânia, o conjunto, é obra de fino lavor, como se dizia antigamente. Para o leitor comum, como eu, torna-se até muito difícil apontar este ou aquele relato como mais próximo do perfeito. Porque Adriano Espínola é poeta em prosa e verso, como só acontece uma ou duas vezes a cada cem anos.
Fortaleza, 18 de agosto de 2011.
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