Enquanto lia o romance Carnavalha, de Nilto Maciel (Ed. Bestiário, 2007), lembrava-me de muitos livros e filmes. A impressão frequente de que a obra do cearense é uma série de contos amarrados pela unidade de tempo e lugar, encaminhou-me ao Decameron de Bocáccio, com sua centúria de histórias. E veja isto:
Os gatos, cada vez mais numerosos, pareciam milhares. E miavam sem parar, garras e dentes à mostra. A mulher abria a porta da rua: “Vamos fugir, Juarez. A casa fica para eles”. (páginas 94/95)
Isso me remete a um vídeo do cineasta paraibano Marcus Vilar, adaptado do conto "A Casa Tomada", de Cortázar, em que eu – como ator – fui fechando compartimentos e mais compartimentos de minha casa invadida (por não se sabe quais seres) até que, com a mana, me vi na rua.
No Carnavalha vemos uma cidadezinha interiorana nordestina transformada e transtornada pelo carnaval, a princípio sob uma óptica bem realista, com trechos de mestre como este, que nos preparam para a transição, que logo virá, para o clima de pesadelo:
... enquanto na cadeira (de balanço), tossia e escarrava quase sem cessar. Ao seu lado um rádio falava de calamidades, política, esporte e outras trivialidades. Ele conversava e discutia com os locutores. Aborrecido, mandava calarem seus invisíveis interlocutores. A criada acudia e virava o botão do rádio, calando-o. (página 19)
De mestre, não?
Lembro-me de que quando lancei meu romance A Verdadeira Estória de Jesus pela Ática, em 1979, Affonso Romano de Sant´Anna enquadrou o livro na carnavalização da literatura, sugerida pela teoria de Mikhail Bakhtin. Eu jamais ouvira falar daquilo. O título e o ambiente do Carnavalha de Nilto Maciel me levam ao mesmo rótulo. O carnaval da cidade – com sua invasão de turistas fantasiados, vindos principalmente do Centro e do Sudeste – induz a narrativa a uma onírica invasão de cães e gatos, ratos e insetos, em que a ordem se subverte. Invasão essa que me lembra as dez pragas do Egito – da Bíblia tão evocada na estória – em que se incluem a proliferação de rãs, piolhos e moscas. Essas rãs, por sua vez, me levam à chuva delas no filme Magnólia, de Paul Thomas Anderson,
... chuva que me lembra o grande sucesso que foi e ainda é a música It´s Raining Men, Halleluyjah! (Está Chovendo Homens, Aleluia!) que por sua vez me leva ao quadro A Queda – Chuva de Homens, de René Magritte.
E a invasão de cães? Lá está, no romance A Hora dos Ruminantes, de J. J. Veiga, imediatamente seguida por outra, de bois. Mas o que seria essa insistência na apresentação de uma Natureza invasora, raivosa, que volta em Os Pássaros, de Hitchcock?
Carnavalha nos entrega uma pista do que seria isso ao nos apresentar seu mix de luxúria e religião no período carnavalesco da cidade de Palmas. Veja que detalhes primorosos:
Uma lâmpada acesa na sala, na ponta de um fio, parecia coroa dourada na cabeça do Cristo na parede. (página 27)
E ele corria por um corredor estreito, mal iluminado, no fim do qual avistava pequeno corpo humano crucificado. Avançava em direção à cruz e mais distante ela parecia, como se se afastasse progressivamente dele. (página 122)“Avançava em direção à cruz... e mais distante ela parecia”. Eis a mesma mensagem traduzida por estas duas parábolas:
Um jovem rato também se aproximava de Orlando: “Já fui pastor”. O rapaz olhava para o ratinho com piedade: “Pastor de ovelhas, cabras?” O animal sorriu: ‘Pastor de igreja!’ (página 130).
Foliões invadiam a igreja,escancarando as portas laterais e da frente. Fantasiados de roupas coloridas, pintados e seminus, gritavam, cantavam e pulavam. (...) O pároco não mais de batina, porém vestido de uma capa preta, chifres enormes, um rabo a balouçar, língua de fora. (...) agarrava Maroca por trás e fazia menção de violentá-la. “Introíbo ad altare Dei”. (páginas 100/101)
A liberação do animal que todos temos em nós se evidencia. Tanto na fúria faminta, quanto sexual.
Vestiu a camisola e se deitou. A mão esquerda deslizou do seio até o ventre. Abriu as pernas, lentamente. “Tavinho, Tavinho, você é um perdido”. (página 37)
It´s raining men, hallelujah”
Rip off the roof and stay in bed.
Arranque o teto e fique na cama.
Mas a reação humana acontece, dantesca:
Agarravam as aves pelas asas e torciam-lhes os pescoços. Quincas puxava os ratos pelos rabos e os atirava para o alto. Erguia um espeto afiado, no qual os roedores, aos guinchos, se iam acumulando. Luísa o ajudava, retirando o espeto dos corpos e lançando-os aos gatos. Estes, iludidos, avançavam na direção dos ratos. Logo, porém, Juarez os pegava. (página 46)
Nilto Maciel, servindo-se de uma técnica que, no cinema, exigiria uma montagem de takes em fuzilaria, abre clareiras de sonho, em tal pesadelo. Note-se a noção, de repente, de que – sem sair desse clima – ele nos lembra que estamos nas mãos de um escritor:
Eram borboletas de muitas cores, que ora se transformavam em flores, ora em ovelhas. O rapaz tocava nas flores. Esvoaçavam letrinhas, formando palavras: vermelho, azul, amarelo, verde. Passava a mão no pelo das ovelhas e dele saltavam outras palavras: pelo, maciez, brancura. (página 136)
Finalmente, mais uma obra a que o Carnavalha me remete: a peça La Vida es Sueño, de Calderón de La Barca. E chegamos à de outro espanhol, Goya, em sua gravura El sueño de la razón produce monstruos.
O surrealismo do sono, da carnavalização literária, vem permitir-nos a presença de quem não podemos ver na vigília – no caso personagens como Calígula, São Pedro e Quixote, que figuram no romance – e a dramatização do fato de que estamos mergulhados num enorme (às vezes apavorante) mistério:
Aluísio se mantinha calmo e explicava: “A vida é assim mesmo, sem razão aparente”. (página 126)
A vida é assim mesmo: sem razão... aparente.