Acordei cedo hoje e nem me lembrei de que se comemora o dia dos pais. Após o café da manhã, vistoriei o escritório: o que fazer neste domingo? Numa estante, a placa que em Limoeiro do Norte me entregaram Eugênio Leandro, Raymundo Netto, Gylmar Chaves e outros escritores. Aconteceu naquela bonita cidade do Ceará a I Feira do Livro, iniciada dia 11. Deixei a homenagem de lado e amaciei a lombada de doze livros que me esperam para leitura ou comentário. Fechei os olhos e apontei o dedo indicador para um deles: Será este o escolhido para ser devorado hoje. Abri-os e vi o dedão duro apontado para o pequeno Do avesso (São Paulo: Com-Arte, 2010), de Renato Tardivo. Há dias o namoro (o livro), com lambidas nas orelhas e afagos em suas partes íntimas. Pleno de erotismo, levei-o nos braços até o sofá da sala e me pus a admirá-lo.
João Anzanello Carrascoza é quem subscreve as abas. E vai logo dizendo: “Com esta coletânea de contos breves, Renato Tardivo escapa da tentação dos estreantes impacientes e começa do lado certo: avesso à ansiedade. Avesso à pseudovanguarda, à experimentação ingêua, avesso ao registro vão da violência, ao oportunismo místico, à prosa desmetaforizada, avesso à transgressão mercantil e a outros modismos do mainstream. Tardivo vai devagar, ouvindo a sua voz que, se precisa de mais desafios, já se destaca pelo timbre, pela coloração, pelo vigor”. Observou o essencial. Fixo-me num desses pontos fundamentais de sua observação: o registro vão da violência. Pois o que se vê por aí é isto: o registro vão da violência, como se a literatura não pudesse sobreviver sem a descrição/narração de fatos (de fora), tripas esfoladas, riachos de sangue, como nas reportagens mais sensacionalistas dos jornais e televisões.
Tardivo é psicólogo, psicanalista e professor universitário, dedicando-se à estética, fenomenologia e psicanálise. Não poderia, pois, se deixar atrair pelo canto de sereia da notícia policial, cuja pobreza nem chega a ser literária. Renato Tardivo teve bom princípio: sua dissertação de mestrado abrangeu o romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, e sua versão cinematográfica. Por isso (talvez não seja por isso) escreve contos como “Queda livre”. Como observou Daniel Franção Stanchi, em “A literatura do avesso de Renato Tardivo”, “A experiência da leitura de Do Avesso é fascinante, tanto pelo tratamento dado à linguagem que desliza entre o cinematográfico e a prosa poética, tanto pela temática multifacetada de mistérios e revelações impressionantes as quais só os bons escritores nos dão”.
É de escritores e livros assim que meus domingos carecem. De frases como estas, do conto “Graça”, que é uma beleza: “Ela ficava deslumbrante quando montava. Eu ia atrás a espreitar a visão mais maravilhosa do mundo. Se pudesse, pensaria todos os superlativos que chacoalhavam naquela sela”. Eu, leitor, se pudesse, escreveria também como Renato Tardivo. Ou se fosse como aquele menino que cresceu “com gosto de ovo caipira na boca”.
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