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Foi com grande surpresa e admiração que recebi inusitada encomenda. Aquele exemplar de “Correspondências” trazia inscrita a dedicatória de próprio punho do autor, Péricles Prade, datada do dia em que meu pai comemorava seu natalício.
O livro “Correspondências: narrativas mínimas” contém 22 contos de realismo fantástico mais o posfácio de Álvaro Cardoso Gomes – intitulado “A lógica do delírio” – ao longo de exatas 96 páginas. A insólita e sugestiva ilustração da capa, concebida por João Colagem, é também digna de menção, [1].
Cada um desses contos encerra em si a semente do transporte para os planos subjetivos do poético, do simbólico, do onírico; chave para profundo (auto-) conhecimento. A experiência de leitura de verdadeira obra-prima é aquela da descoberta. Senti-me como antigo homem das cavernas, a colher faíscas ígneas em gravetos, a partir de energia vasta e efêmera, desprendida dum relâmpago súbito. É assim: através dessa imagem pictográfica a melhor síntese quanto ao conteúdo do livro.
O objetivo desse texto – misto de resenha e composição livre, a partir de excertos de “Correspondências”, [1], e de uma entrevista concedida pelo autor no ano 2005, [2] – consiste em estimular o leitor a repetir essa aventura: verdadeiro mergulho no universo de literatura concisa, inteligente, imaginativa, moderna e, sobretudo, brasileira.
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Péricles Prade é escritor – poeta, contista, historiador, crítico literário e de artes plásticas –, advogado e professor universitário. Nascido em 7 de maio de 1942 na cidade de Rio dos Cedros, quando esta ainda pertencia ao município de Timbó, SC.
“Lembro-me, apenas, que sentia (como ainda sinto) uma irreprimível necessidade de escrever, na realidade reveladora de vocação literária”. “Conquanto não tenha iniciado por direta influência literária, esta existiu e existe no curso de minhas produções. Harold Bloom que o diga. Daí que, na poesia, registro Blake, Lautréamont, Rimbaud, Mallarmé e Eliot. Quanto à ficção, Nerval, Hawthorn, Kafka e Jarry. E envolvendo esses gêneros, como pano de fundo, o ocultismo e a mitologia”.
“Percebe-se que o papel da poesia, no fundo, continua o mesmo, quer o mundo, ou não, viva grandes conflitos de expressão universal, coisificando o homem: ou seja, o da revelação da essência do cosmos individual e coletivo pela fé nessa arte”. “A poesia é entranhado reflexo da vida”. “E a natureza, já dizia Heráclito, ama ocultar-se”.
“A obscuridade e o hermetismo somente prestam obséquio àqueles que não se esforçam para descobrir a lava incandescente sob esses vulcões representativos de uma poética de exceção em busca constante de epifanias”. “Exigem preparo intelectual, sim, por serem fruto de poesia para iniciados, conquanto desnecessária seja a erudição especializada, correspondendo a um projeto poético-existencial”. “Não há dúvida: o poder do símbolo ainda nos acompanha. Ocorre que o símbolo é apenas um dos elementos da mitologia e dos mitos, sendo os arquétipos, a teor do perfil junguiano, as idéias em comum com estes”.
“A ficção por mim criada é vinculada à denominada narrativa fantástica. Para os que não sabem, o fantástico, segundo Todorov, é a hesitação experimentada por um ser que, conhecendo tão-somente as leis naturais, encontra-se diante de um acontecimento tido como aparentemente sobrenatural. Daí durar o tempo de uma hesitação”. “De outra parte, alinho-me ao uso do staccato caracterizador da medida econômica e autônoma de muitos versos, quando a miniatura se instala, mas contendo o macrocosmo representativo de uma cosmogonia singular, isto é, sem comprometer a originalidade. É nesse espectro que se catapulta minha imaginação”.
“Considero-me um homem realmente feliz”. “Meu maior prazer estético, para manter a felicidade, é escrever, ler e ouvir música, principalmente Bach e Vivaldi”.
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JUNTO AO CORAÇÃO. “Pus os olhos nos da criatura, mais de uma vez, certo de que, postada à minha frente, não era deste mundo”. “Não se mexeu. Criei coragem, e fui quase correndo a seu encontro, movimentando os braços como se fossem hélices”.
VENDEDORAS DE VENTOS. “Digo sem receio: supunha que minha cunhada fosse, no mundo, a única vendedora de ventos, estocados em desordem num saco fechado com a corda de três nós”. “Dependendo do interesse dos compradores, bastava abrir determinado nó, com redobrado cuidado, para dele sair vento fraco (espécie de brisa doce), vento forte (violento, às vezes) ou tempestade de várias intensidades”.
PAISAGENS. “Elói recolheu a garrafa expulsa pelo mar. Aquela que lhe bateu nos pés, como se quisesse dizer algo”. “O irmão caçula, Jeremias, quando acordou, na manhã seguinte, ao olhar a garrafa ficou encantado com a sua forma oval”.
SONHOS. “Embaixo da cama, perto de onde deixei as botas de feltro, os lampiões de folha de flandres, os rótulos das garrafas, a bengala com volta na ponta e o colete de veludo, ouvimos o contínuo rumor de baratas, mas ficamos calados, na expectativa de que um de nós falasse alguma coisa”.
RABOS DE TIGRE. “Um tigre branco não me agrada. Prefiro a cor tradicional, sem retoques. Mas ele está ali, olhando para mim, cheio de vontades”.
NOVOS RELATOS DE LUIGI POMERANOS. “Nem todo cão se espanta com a cor que no mar flutua à espera dos heróis ainda encarcerados”. “Não late. Com fervor, estende a pata esquerda sobre o melancólico rosto da paisagem móvel”.
PASSAROMORFOSE. “O ornitólogo desceu a ladeira com habilidade, aos pulos, concentrando-se no que iria fazer no Laboratório da Universidade”. “Ao pular, passou-lhe pela mente, no instante do terceiro salto, a idéia que vinha se repetindo nos últimos anos: se fosse pássaro, não precisaria agir assim. Bastaria bater as asas, voar e chegar ao destino, rapidamente, sem necessidade de, sonolento, levantar-se da cama tão cedo”. Entretanto, seu desejo era o de ser um daqueles que os homens, fruto de milenar experiência, reconhecem como bons. A relação é grande, mas na realidade somente três foram convocados pela sua imaginação, compreendendo o simorgh, o rouxinol e a andorinha”. “O persa simorgh porque, além de curandeiro-confidente, possui a linguagem humana e conserva o hábito de transportar heróis a longas distâncias”.
HIPNOTIZADOR. “Sempre tive verdadeiro fascínio por relógios antigos. Sei tudo sobre eles, desde a origem. A partir do dia que não me recordo, passei a colecioná-los. Quando não mais cabiam em casa, resolvi abrir o antiquário, sediando-o na Rua dos Alquimistas 2491, após registrá-los, com minúcias técnicas, na caderneta presenteada pelo Comendador Carmine Baggio”.
ENTRE SOLUÇOS. “Desapareceu, em seguida, diante da platéia ainda perplexa”. “De nada adiantaram os aplausos e a exigência do retorno ao palco”. “Aquela era uma noite diferente das anteriores, pois ele já havia dito, na sessão retrasada, entre soluços, que desistira em definitivo da profissão”. “Seu pai, senhor de respeitáveis costeletas, orgulhava-se do magnífico sucesso do filho adotivo”.
VOCAÇÃO. “Meu pai, quando pela primeira vez, manifestei o desejo de ser adestrador de porcos, influenciado por um amigo, com desprezo e o dedo em riste disse que eu estava delirando”. “No início, fui auxiliar de geólogo, que com varinha de condão, localizava, sob encomenda, água pura nas profundezas da terra”.
Referências:
[1] Prade, Péricles; “Correspondências: narrativas mínimas”; 96p; ISBN 978-85-7195-151-8; Editora Movimento; Porto Alegre; (2009)
[2] Vasques, Marco; “Fantástico e estranho mundo de Péricles Prade (entrevista)”; Agulha – Revista de Cultura; 43; Fortaleza, São Paulo; (2005) http://www.revista.agulha.nom.br/ag43prade.htm
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