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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Falando francamente (Francisco Miguel de Moura)*



Numa ocasião como esta, a tentação é falar de si próprio. Mas seria impertinente falar sobre mim, quando minha apresentadora, Profª Teresinha Queiroz, já disse tudo e de forma muito clara e generosa. Resta-me, portanto, agradecer, e falar sobre a criatura – minha obra – e não sobre o criador. Lembro sempre do que disse Confúcio: – “Não se deve a todo momento ficar falando de si, por dois motivos: é que, se falamos de bem, ninguém vai acreditar, e se falamos de mal, todos acreditarão”.

Entrando no assunto que quero desenvolver, de imediato me vem à lembrança um certo dia dos anos 1980, morando em Salvador, quando entrei numa livraria e comecei a olhar os livros, atividade para mim muito prazerosa, mesmo que nada possa ler além do título, autor e orelhas, e mesmo que nada possa comprar daquela vez. E, por uma simples coincidência, li na lombada de uma pequena brochura, o seguinte título O Menino Perdido, de autor americano, já falecido há muito tempo. Comprei o compêndio, li todos os contos e gostei, mas, por algum mecanismo obscuro da mente, não guardei nem o livro nem o nome do autor. Foi o meu espanto. Senti-me roubado, pois já me fixara naquele título para escrever algo que fosse memória da minha meninice.

Lembro-me também de outro dia, já no começo dos anos 1990, em Luís Correia, depois de um banho na praia de Amarração. Sentindo já o começo de uma intransigente crise de depressão, comecei a reler pedaços de contos, crônicas, capítulos. Saudade e angústia. Vontade de fazer algo distinto do que já tinha lido sobre a infância. Era isto que sentia. E começava a refazer alguns bosquejos miúdos, num caderninho escolar, e a partir dali ressurgia o nome de O Menino Perdido como título não definitivo. Começada a escrita, vieram as indecisões. Não encontrara um novo título e isto me contrariava. Era impossível abrigar minha matéria sob esse título e depois publicá-la. Eu já havia escrito uma crônica com o título de "Um Menino Perdido", que logo desejaria publicada num livro de crônicas, o que de fato aconteceu em 1996.

Muitos questionamentos foram feitos mentalmente e permaneceram em ebulição na minha cabeça. Era muita a matéria a escrever, e não queria um livro grande, no fundo eu desejava um grande livro. Também nem pensar em fazer coisa parecida com O. G. Rego de Carvalho, em Ulisses entre o Amor e Morte. Não tinha como. Eu sou realmente discípulo de O. G. Rego de Carvalho e muito me orgulho disto. Ele é um dos maiores amigos que fiz na minha vida, em Teresina, só não maior do que o Hardi Filho, poeta dos melhores do Piauí, pessoa com quem primeiro me encontrei em Teresina e, juntamente com Herculano Moraes, fundamos o movimento literário O CLIP – Círculo Literário Piauiense. Com O. G. Rego de Carvalho foi diferente: antes de encontrar-me com ele, como colega do Banco do Brasil, já havia lido Ulisses entre o Amor e a Morte. Foi outro espanto na minha vida. Espanto que se repetiu em Somos Todos Inocentes e em Rio Subterrâneo. Que obras incomparáveis!

Mas quantos escritores, que vieram antes dele e de mim, escreveram a infância (ou sobre a infância)? Lembro-me de alguns: José Lins do Rego, com seu O Menino de Engenho; Graciliano Ramos com o seu livro Infância; Joaquim Nabuco, com o espetacular Minha Formação. Os clássicos russos Dostoiévski e Leon Tolstói fizeram livros sobre sua infância e adolescência, excelentes obras cujos nomes não me vêm à memória. Os clássicos modernos mais à vista seriam O Pequeno Príncipe, de Antoine de Exupéry, e O Menino do Dedo Verde, de Maurice Druon. A enumeração seria enorme e tomaria muito tempo. Não falemos das historinhas da vida comum e das fábulas antigas renovadas que tanto têm sido escritas e publicadas como meio de ganha-pão de escritores desempregados e de editores sem imaginação senão a do vil metal. Claro que o genial Monteiro Lobato não entraria nessa última classificação, antes merece ser o primeiro da boa lista, com Memórias de Emília e Caçadas de Pedrinho, para referir apenas duas da sua numerosa produção.

Não, eu jamais escreveria uma história ou um conto com o fim único de ganhar dinheiro. Ganhar dinheiro é bom, mas vender a consciência é horrível.

Passei mais de 20 anos a elaborar O Menino quase Perdido. Finalmente, sem matar completamente o nome primitivo, encontrara o novo título: com uma palavrinha apenas ganhei originalidade. Daí então passaram a ser pensadas, com mais gosto, as formas de escrever e a escolha do conteúdo de cada uma das suas partes. Ele, O Menino... não é um conto grande, não é somente feito de contos encadeados, não é de crônicas, não é um romance. E é tudo isto. Ou quase tudo. A matéria eu já possuía até demais, não que minha infância tenha sido tão rica, mas foram minha infância, minha família, minha terra, minha vida que me inspiraram para escrever esta obra. Original na forma, dentro do poder de minha inventiva. Escolhendo como escrever e o que escrever. E o que publicar e o que deixar de publicar. Muitas páginas foram rasgadas. O livro é não somente real como pode ser ficção, imaginação de homem adulto sobre o que e como sentia o menino, naquele tempo. Um transporte enorme no tempo, no espaço e nas emoções. Assim se casaram o distanciamento e a intimidade. Quase todos os personagens são parentes: pai, mãe, avós, tios, irmãs, primos, amigos, amigas e namoradas – algumas inventadas.

Mas é preciso que diga: – este livro é da minha mãe, principalmente. Quem não gosta de mãe certamente não vai gostar dele. Assim como para Saramago a pessoa mais sábia que ele conheceu, quando menino, foi o avô, para mim, foi minha mãe, até os 8 anos. Fui educado para emoções duradouras e positivas. Daí por diante, juntar-se-ia a influência de meu pai.

Com relação a sua composição, repito: – Foi todo escrito e reescrito muitas vezes. Não digo que esteja perfeito. Não há perfeição, na espécie humana nem sei se em outras. A perfeição é apenas um ideal a perseguir. E é isto que os bons escritores fazem, por si, para si e pela humanidade.

Creio que estou sendo capaz de dizer pouco sobre a matéria de O Menino quase Perdido, mas o suficiente para saber-se que não se trata de biografia, muito menos de minha biografia. Minha biografia são meus livros, não sou cientista nem personagem da mídia, não sou político para quem tudo o que faz precisa ser dito e mostrado, e mentido e enganado. Sou um homem simples e ao mesmo tempo vaidoso do que faço, do que penso e do que recuso. Se em O Menino quase Perdido isto for achado, então o escritor, o personagem onisciente não pôde ser totalmente isento de imprimir sua marca. Eis minha luta pela originalidade e pela diferença em minha escrita, assim como sou diferente em pessoa, sabendo como o filósofo Schopenhauer, que “o estilo é a fisionomia do espírito” e não da cara.

Para confirmar minhas palavras, é pertinente que cite, mais uma vez Arthur Schopenhauer (1788 – 1860), filósofo d “os anos selvagens da filosofia” e autor de “O Mundo como Vontade e Representação”. Escreveu ele: 1º) “Um livro nunca pode ser mais do que a impressão dos pensamentos do autor”; 2º) “Para estabelecer uma avaliação provisória sobre o valor da produção intelectual de um escritor não é necessário saber exatamente sobre o que ou o que ele pensou, pois para tanto seria necessária a leitura de todas as suas obras. A princípio basta saber como ele pensou”.

Pensei “O Menino quase Perdido” como uma obra original sobre a infância, no estilo e na construção, quando qualquer menino é rei, ficando distante o autor onisciente, muito distante do que sentia e sente “o menino”, no íntimo – ambos realmente tornados personagens.

Auguro, pois, que O Menino... seja lido como verdade mista, real e ficcional, coleção de contos, de crônicas, ou mesmo romance, para os leitores mais liberais. Editorialmente é um memorial, assim ficou classificado e registrado. E que cada leitor encontre seu menino de forma diferente, da forma que o próprio leitor foi em criança. Se assim acontecer estarei pago.

Finalizando, repito com o vulgo que “de bons propósitos, o inferno está cheio”. Sim, porque me traí e traí a todos, dizendo, no início, que não iria falar de mim mesmo, porém da obra. Acontece que a obra é o homem. Eu sou a minha obra, jamais um se desligará do outro. Se isto acontecer, ambos são falsos ou hipócritas e é isto que eu não quis nem quero ser.
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* Depoimento de Francisco Miguel de Moura, lido no lançamento de O Menino quase Perdido, na APL, em 17-9-2011 (sábado pela manhã).
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