José Saramago e Pilar Del Rio |
Dércio Braúna, a mais recente e forte poesia do Vale do Jaguaribe, com pés entrantes já em contos e passos avançados em pesquisas acadêmicas, deu-me cópia de uma maravilha. Trata-se do filme documentário “José e Pilar”, um acompanhamento do cotidiano do escritor português José Saramago e sua esposa e parceira em todas as venturas e desventuras, a jornalista espanhola Pilar Del Rio.
O resultado não poderia ser outro na minha alma: fiquei alegre, comovido, encantado, pensativo, pasmo, esperançoso, espantado, cheio de idéias, enfim, uma vastidão de pensamentos e sentimentos varreu-me o tédio, a preguiça, a mesmice, a visão e a cegueira.
Costumamos aprisionar os outros em nossos esquemas interpretativos congelados e fixos, como se uma pessoa fosse só duas ou três imagens, ou alguns comportamentos. Erramos feio muitas vezes, pois uma pessoa extrapola conceitos: uma pessoa é ela mesma, e ser ela mesma significa o conjunto aberto de relações vivas estabelecidas por aquela pessoa. O que depreendemos da imagem que formamos dela é o que depreendemos da imagem que formamos dela; não é a própria pessoa. E Saramago era muito mais que o “intelectual pesado”, o Nobel, o irônico ateu e comunista eivado de um “neo-iluminismo” até questionável. José Saramago era um excelente cidadão! Do mundo.
Para além do magnífico escritor que já conhecemos, surge o marido Saramago em seu dia a dia na linda casa na Ilha de Lanzarote (Arquipélago das Canárias), em suas relações de homem nos afazeres de levar uma mensagem ao mundo através de sua fala, seja no papel ou nos zilhões de palestras e entrevistas e eventos literários, dentre outros. E haja paciência, ainda mais em sendo o Saramago já um senhor em idade avançada.
Pilar Del Rio nos aparece uma figura fortíssima, dona também de uma cidadania enorme e esposa de carinhos e diálogos essenciais ao velho mestre português. É clichê o que vou dizer, mas é a mais pura verdade: nasceram um para o outro. Difícil lembrar-se de um sem ligar imediatamente ao outro.
E não se imagine um documentário daqueles feitos simplesmente para guardar algo, tal ao papel dos documentos de registro. Ao contrário: Miguel Gonçalves, seu realizador, construiu um trabalho de profunda densidade, de riquíssima tessitura emocional pelo encadeamento dos fatos e pela intrínseca e inevitável poesia, desde um simples olhar à visão das paisagens, ou da casa de Saramago e Pilar. O que descobrimos é que nunca soubemos direito quem era aquele velho senhor sisudo e crítico, “cara dura”, e sua bela e contundente senhora. Sabíamos que se amavam e que já isso daria um filme.
Os livros de Saramago, para mim, passam a ter um valor diferente. Sinto-me agora no dever de ser um dos milhões de cuidadores de sua obra e de sua memória porque (humano e especialmente cidadão em busca de um mundo mais justo) ele tornou a mim e aos habitantes da língua portuguesa pessoas mais visíveis no mundo. Saramago deu-nos dignidade e esperança, uma esperança no trabalho, na ação, na vontade.
Depois de “José e Pilar” não me sinto mais apenas um leitor de Saramago, mas um caminhante que se põe junto do mestre (sua memória) e planeja caminhar um pouco, tenta contribuir com sua (minha) parca ênfase, com seu (meu) mínimo gesto, sabendo-o, ao gesto, necessário e bom ― porque amigo.
Recomendo a você, leitor(a) paciente que chegou até aqui: adquira uma cópia de “José e Pilar” e assista quantas vezes quiser e puder. No mínimo, pressinta a humanidade que ainda resta entre nós e entre nós e aquele casal daquelas manhãs e tardes naquela distante ilha de um tempo recente; no máximo, exploda a súmula de vida que, represa na “alma ordinária”, exige ser mais vida e fazer mais alma na tua (na minha também) pessoa. Nós somos mais que súmulas consumidoras de fast-food, lembra-nos este documentário.
E como não?
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*Publicada em Arcanos Grávidos
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