(Péricles Prade)
Conheço a literatura de Péricles Prade desde a publicação de Os milagres do cão Jerônimo e Alçapão para gigantes. Sua obra é vasta e vem se acumulando ao longo dos anos. Não digo se enriquecendo, ou se aproximando da perfeição, pois não tenho instrumento para medir o assunto literário. Sou apenas um leitor passageiro dele. Assim mesmo, em 1994 escrevi um ensaio sobre a literatura fantástica no Brasil e dediquei uma fração à prosa ficcional de Péricles. Depois perdi o contato com ele. Em 2010, ainda morador de São Paulo, ele voltou a se comunicar comigo. Dia desses de 2011 (agora residente em Florianópolis), ele me enviou uns impressos. São belos artefatos de papel.
O primeiro deles é Relatos de um corvo sedutor. Vem de 2008, tem ilustrações de Fernando Lindote e posfácio de Dirce Waltrick do Amarante. Está dividido em 10 capítulos, com uma “Anunciação”: “Sou o filho ilegítimo do Revelado, o eterno número 7 da tribo. Aqui deixo à posteridade os relatos do que aconteceu em penas três dias de viagem”. Os trechos têm títulos pomposos ou longos, como o inicial: “As cidades visíveis sob o corpo voador”. Seria um pequeno romance? A “posfaciadora” o qualifica de “narrativa vertiginosa”. E explica: “Parece impossível ler a narrativa de maneira convencional, acompanhando sempre a evolução da trama e desvendando a cada passo a função exata dos personagens”. Não a chama de novela ou romance, para não se ater à nomenclatura tradicional. “Poderia classificar essa literatura de nonsense. E Péricles Prade é, como se sabe, um dos grandes cultores do nonsense no Brasil”.
O passeio do corvo (segundo Dirce, o ser criado por Prade “é também o corvo implacável do mito grego, o corvo misterioso dos hai-kais e o corvo sinistro de Poe”) se dá sobre a Ilha de Nossa Senhora do Desterro (a Florianópolis de hoje), após sobrevoar “várias cidades”, sempre a liberar “com prazer o esfíncter aos poucos”: Florença, Paris, Salem, Tóquio, Buenos Aires, Dublin e, por último, Alexandria.
O segundo presente de Péricles se intitula Correspondências: narrativas mínimas (2009). Na primeira metade da coleção estão 22 histórias e, na outra, um estudo de Álvaro Cardoso Gomes. As composições são curtas ou bem curtas, como “O retorno”, “Engrenagem”, “Rabos de tigre”, “Correspondência”, “Falsa doação”, “Príncipe devoto” e “Neto de saltimbancos”. As abas estão preenchidas com trechos de artigos de diversos críticos, como Cassiano Ricardo. O conto que abre o volume é, como os demais, enigmático. Seus personagens: Lutero, o diabo (“um apaixonado pelas excelsas virtudes da uva”), Carlos Gomes, o filho ilegítimo de Casanova e outros convidados para uma sessão de “degustação de tintos”.
O tratado de Álvaro se intitula “A lógica do delírio” e faz a dissecção desta obra de Prade: “Correspondência é um livro conciso, econômico, mas rico em sugestões, acentuando as mais incisivas características da ficção poético-onírica de Péricles Prade, na medida em que mergulha de maneira categórica no mundo do fantástico, do pleno desvario, da magia”.
Como isto é apenas uma notícia, não direi mais dos contos nem da dissertação. É preciso lê-los.
O terceiro mimo que Péricles Prade me fez é composto de poemas: Sob a faca giratória, publicado em 2010. Nas abas, Ronald Augusto se refere ao “hermetismo compositivo de Péricles Prade”, a quem chama de “polígrafo de imaginário radical”. Lá para o diante, após confrontar a poesia de Prade com a de Orides Fontela, enuncia: “Seu hermetismo é voluptuoso e, portanto, não faz o elogio à esterilidade de consistência mallarmeana”.
O escrito está dividido em 10 partes, cada uma com cinco poemas. Não transcreverei nenhum deles, por falta de espaço. Só algumas frases de impacto, para dar uma ideia ao leitor de quem é este poeta com as antenas ligadas nas nuvens: “Percorro todo o fio / do sabre mudo / ouvindo Mozart”. Ou esta: “O poeta suspende o rosto / nas águas de Narciso”. Há prosas também, como “Na caverna de Platão”, “No palco”, “Maravilhas” (“Quem não se benze, provoca o ronco dos furacões”), “Outras maravilhas” (que me pareceram mais próximas do anedótico) e “Sobre o candelabro”.
O volume se fecha com um ensaio de Cristiano Moreira: “A palavra giratória”. Agudíssimo estudo da poesia, não só a de Prade. Veja-se isto: “Escrever pode ser, portanto, uma forma de engendrar um vazio. Poesia engendrando imagens. Se pensarmos nisso, nas imagens possíveis dos poemas, teremos uma superfície elaborada como um palimpsesto, ou seja, poética cujos extratos re-velam a potência histórica da imagem”.
Para espanto de muitos, o quarto objeto a mim enviado pelo poeta sulista se chama Bruxaria nos desenhos de Franklin Cascaes. Há alguns anos li a respeito desse escultor, desenhista, escritor, montador de presépios nascido em Itaguaçu (Florianópolis). Agora vejo a “Tesoura bruxólica” (um desenho a nanquim dele). E muitos outros. Na introdução, o crítico de arte Péricles Prade captura o leitor assim: “A obra plástica e literária de Franklin Cascaes é abrangida, indiscutivelmente, pelo universo do fantástico, envolvendo seres humanos e de outra natureza”. O impresso é de 2009, mas vai bem fundo no passado, não só do personagem (nascido em 1908), como da própria bruxaria, “uma invenção do século XV”. O que é universo bruxólico? Que são bruxas terráqueas e aéreas? Pois Franklin se especializou em desenhá-las. O volume está cheio de desenhos. Uma delícia!
Para finalizar este noticiário, duas palavras a respeito de A literatura e as artes visuais: Diálogos em espelho, de Álvaro Cardoso Gomes e Eliane de Alcântara Teixeira. São dez dissertações a respeito de peças literárias em suas relações com as artes visuais ou entre os códigos verbal e não verbal. O último deles é “Ecfrásis e o diálogo intertextual em Péricles Prade: reflexões sobre as artes visuais em narrativas de três livros de contos do autor”. As coleções estudadas são Os milagres do cão Jerônimo, Correspondências e Espelhos gêmeos. Referem-se os ensaístas ao discurso intertextual de Prade com as composições literárias de alguns autores canônicos e também com formas não-verbais da arte, como imagens pictóricas, escultóricas, fotográficas e cinematográficas.
Com estes novos livros, conheci um pouco mais da obra de Péricles Prade e escapei ileso de seus alçapões. Infelizmente, não pude me livrar de seus milagres e, muito menos, de suas bruxarias.
Fortaleza, 9 de outubro de 2011.
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