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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

As molduras ficcionais de Lourdinha Leite Barbosa (Aíla Sampaio)


Pela moldura da janela & outras histórias, segundo livro de contos de Lourdinha Leite Barbosa, traz 22 histórias distribuídas em três blocos: “A vez delas”, onde temos narrativas que focalizam nuances de personagens femininas; “A vez deles”, que abre espaço ao universo masculino, e “Dois pra lá dois pra cá”, com quatro contos que, dois a dois, contam e recontam o mesmo enredo por meio de pontos de vista diferentes.

Suas narrativas são concisas, sua linguagem é simples, mas velada em símbolos que puxam a atenção do leitor. Por que o mundo perde as cores para a protagonista do conto “Pela moldura da janela”? Por que as borboletas da capa da agenda ‘voltam a voar’ quando a menina passa a utilizá-la, após a morte da avó? Por que o segundo lote de vinho servido é melhor que o primeiro (em “Casamento no Campo”)? Qual dos irmãos fala a verdade (“Costurando a trama” e “Descosturando a trama”). Pequenas inquietações se formam com as provocações daquilo que é menos dito e mais sugerido.

Sua matéria é o cotidiano em desordem: o amor que finda, a velhice, a morte, os desencontros, as limitações humanas, o ciúme, a traição, a vingança, a loucura, a cidade e suas tramas. Nada, entretanto, imprime pessimismo à sua escritura denunciadora dos desequilíbrios, ao contrário, há sempre a possibilidade de renascimento e renovação, como ela bem simboliza na figura das borboletas azuis, desenhos na capa de uma agenda, que parecem ganhar vida na imaginação do leitor.

O título do livro – Pela moldura da janela – também título do conto que abre a coletânea, ratifica o que diz a psicanalista e professora Laéria Fontenele no Prefácio: “Os contos de Lourdinha Leite Barbosa aproximam-se de um quadro”. De fato, são cenas emolduradas, recortes de instantes que ganham vida na sua criação prodigiosa. Os personagens não têm passado nem futuro, só o momento fisgado pela ficção.

Enquanto a falta de amor tira as cores da vida de uma recém-separada (“Pela moldura da janela”), as desconfianças de traição (“Pontos e nós”) não se confirmam nas investigações de uma mulher que vive uma relação duradoura. A velhice que chama a morte (“As borboletas azuis”) renova a dimensão humana na criança que parece dar continuidade aos passos da avó que se foi serenamente. A morte de uma irmã é o recomeço da vida da outra (“Sonata para violino em três vozes”).

A urbanidade sufocante desorganiza o equilíbrio da mulher, e a ficção o transfigura em fantástico. Sim, na subversão do real, sem alegoria entretanto, a mudança da paisagem com a construção de um prédio ao lado do que mora a protagonista desencadeia o insólito em “... Mas que los hay, los hay”. Entre a realidade e o delírio, ela sente a invasão do seu espaço, a perda da privacidade com a presença de pedreiros muito próximos à sua janela. A sensação de emparedamento na selva urbana a faz transpor o real e misturá-lo ao sonho que vira pesadelo e é, ao mesmo tempo, delírio: “Acordou de madrugada com a sensação de estar num navio à deriva. Num impulso sentou-se na cama e não acreditou em seus próprios olhos: o esqueleto de tijolos estava colado à janela do seu quarto, emparedando-a. Desesperada, acendeu a luz e viu o apartamento ser tomado por um bando de morcegos com caras humanas que voavam numa enorme algazarra. [...] Pela manhã ela foi encontrada com um relógio de pulseira preta puída na mão, repetindo sem cessar “Como morcegos, ao cair das badaladas, / saltam de viga em viga os mestres carpinteiros”” (p.38-39).

O mal-estar sartreano desse conto dá à ficção de Lourdinha uma dimensão existencialista, que se afirma prodigiosamente em “Quadros em movimento”, onde o gênero fantástico se realiza com perfeição. Uma moça, Ingrid, recém-chegada de viagem, “com a mala quase vazia, mas a mente repleta”, acrescenta mais um quadro na parede do seu apartamento. Ouvindo distraidamente Chico Buarque, ela não percebe que as figuras dos quadros ganharam vida e estão desertando das telas... desaprisionadas, conversam entre si e denunciam o momento em que foram detidas pelas tintas de algum pintor. Embora demonstre atordoamento, não há racionalização do insólito por um provável delírio da personagem, provocado pelo cansaço: “Durante a confusão, uma moldura caiu. Ingrid levantou-se atordoada. Estava mesmo precisando descansar, suas pernas pareciam não lhe pertencer. Apanhou o quadro e, ao colocá-lo de volta, parou perplexa: sua parede estava coberta de molduras, cujas telas não tinham um vestígio sequer de tinta” (p.45). O inexplicável aconteceu, e a prova são as telas brancas, abandonadas por suas imagens.

Já em “Casamento no Campo”, a sugestão do milagre ‘da multiplicação dos pães’ e da transformação da água em vinho traz uma intertextualidade com a Bíblia Sagrada, mas sem qualquer conotação religiosa. A mãe exige a presença do filho em uma festa de casamento dos vizinhos, cuja cerimônia simples já havia sido muito adiada em função das dificuldades financeiras. Cedo, o vinho acaba, e Maria (a mãe), vendo os amigos angustiados, pede a interferência do filho, que logo passa a encher as garrafas na torneira e... qual a surpresa: todos dizem que o segundo vinho servido é bem melhor que o primeiro que circulara. A possibilidade do milagre toma consistência em dois símbolos que sugerem ser Jesus Cristo o rapaz: o nome de sua mãe é Maria, e o pai é marceneiro. As sutilezas das descrições, entretanto, não permitem constatações, e a história flui no discurso da incerteza.

Em “Tentando acertar o passo”, é a solidão que leva a mulher ao mundo virtual e à busca de um amor por meio de chats de relacionamento. As características do mundo contemporâneo se desenham, enredadas nos sentimentos de desconforto com a existência: a solidão que leva a mulher a buscar amor de forma insegura (“Tentando acertar o passo”) no jogo da vida; a insegurança num casamento de muitos anos (“Pontos e nós”), que faz a esposa vasculhar os originais do romance do marido-escritor para encontrar-se no enredo e comprovar se está sendo traída, numa confusão evidente entre a ficção e a realidade; as limitações em função de problemas de saúde, que levam a personagem a mutilar os livros para poder lê-los, já que não pode mais sustentar o peso deles nas mãos.

Com já dissemos, nenhum problema culmina na ausência de soluções ou de pessimismo: a moça que procura amor no mundo virtual se decepciona, mas não desiste de sua busca; a esposa ciumenta descobre que o amor do marido por ela se renova por meio da criação; a leitora que não suporta o peso dos livros e vive a dilacerá-los procura montar uma clínica de recuperação de livros. Em outra perspectiva, a limitação aparece no conto “Um copo que cai”, quando uma criança sobre numa cadeira para pegar um copo na prateleira alta e sem chorar ao vê-lo despencar-se de suas mãos, enquanto ouvia as recomendações da mãe.

Já no conto “Raios de sol”, que tem como personagens duas jovens estudantes, o ciúme se configura de modo nocivo, pois uma delas, com inveja do cabelo loiro da outra, por quem seu paquera é apaixonado, convida-a para dormir em sua casa e corta os seus cabelos (dela) durante a noite. O símbolo da força ligada ao cabelo retoma a história de Sansão, que perde os poderes quando Dalila corta-lhe as longas madeiras. No conto, sem os louros cachos, a moça perde o poder de sedução.

Em “Sonata para violino em três vozes”, a história se dá em dois momentos: Inicialmente, no ‘Primeiro andamento: lento’, se descreve o casamento feliz de Melina e sua gravidez até a sua morte durante o parto. No ‘Segundo andamento: ligeiro’, a desolação do viúvo logo passa com a dedicação das cunhadas ao bebê. A mais nova delas, Marissol, deixou seu violino na casa dos pais e passou a viver em função da criança, na casa do cunhado. Finalmente, acaba por casar-se com ele e tornar-se mãe da criança órfã de quem é tia. Em nenhuma descrição do conto esse fato se realiza, a não ser na sugestão final: “Ninguém se surpreendeu quando, um ano e meio depois, Artur atravessou a cidade com o velho violino de Marissol debaixo do braço” (p.64). São nuanças assim, sutis mas sorrateiras, para enredar o leitor atento, que dão consistência ao projeto estético das narrativas da escritora e marcam seu estilo enxuto e sugestivo.

Rompendo qualquer rótulo de escrita feminina, Lourdinha mergulha no universo masculino e dá foco às vivências deles. Situações do nosso tempo também avultam como leitmotiv: o intercâmbio do jovem que, fora do país, desenvolve uma síndrome de perseguição (Planejar pra quê?); o menino-leitor de revistas em quadrinho que se transforma em escritor (“Entre imagens e letras”); o menino que tinha obsessão por pés e se torna um fetichista maníaco (“Sapatos, pra que te quero?”); o marido que se vê incapaz de desvendar a alma da mulher amada (“Além das aparências”); a criança que não aceita a ausência do pai e passa a vê-lo num mendigo de rua (“A voz do silêncio”). Há, nos contos, desvendamentos e avessos, patologias repentinas, densidade psicológica. Os subtextos parecem saltar aos olhos do leitor.

A passagem inexorável do tempo e as transformações que ocorrem nas pessoas é marca dessa ficção que tem o humano como cerne, senão vejamos: a agenda da avó morta vira herança da neta, marcando a continuação da vida (“As borboletas azuis”); com o tempo, o viúvo resolve retomar a vida com a irmã da esposa falecida, renovando-se por meio do filho e do novo afeto (“Sonata para violino em três vozes”); o menino pobre, leitor de revistinhas rasgadas, que se acostumara a continuar as histórias com sua imaginação e contá-las aos amigos “com a magia e o deslumbramento provocados pela palavra” (p. 85), torna-se, na fase adulta, um escritor de revistas e vê no filho a sua mesma antiga paixão, só que, na vez dele, os personagens já não são pessoas comuns do mundo em que ele vivia, mas heróis parecidos com robôs (“Entre imagens e letras”), o que revela, mais uma vez o traço contemporâneo dos elementos ficcionais da escritora.

Outra história que parece emergir do passado é “Sapatos pra que te quero”, onde a narradora recorda um amigo que era esteta de pés femininos e toma conhecimento de que, depois de adulto, o fetiche continuou e tornou-se incontrolável, chegando a criar problemas do rapaz com a polícia.

Já em “A voz do silêncio”, um grupo de amigos, que foram jovens nos anos 60, fazem uma festa para promover o reencontro... recordam nomes, atualizam destinos, respiram ao som da Bossa Nova: “A emoção do reencontro foi, aos poucos, suspendendo o presente e trazendo de volta o passado. Eram os jovens da década de 60 que retornavam, irmanados, ao tempo da bossa nova: “Vai minha tristeza e diz a ela que sem ela não pode ser”. Alguns cantavam, outros tinham a palavra cortada antes mesmo de proferi-la, mas ninguém se importava” (p. 118). As rememorações discorrem quase sempre por meio de trechos de letras de música de Tom Jobim, João Gilberto e Vinícius de Morais, num poético exercício de intertextualidade.

Um conto se destaca especialmente pela aparência com fatos reais ocorridos no universo literário: “O envelope amarelo pardo”, em que se conta a última ida de um escritor aos Correios, para postar livros aos amigos; quando chegaram ao destino e foi lida a dedicatória, os amigos já sabiam que, na volta para sua casa, o escritor havia sido atropelado e morto. As dedicatórias figuram como uma despedida. Pelo teor da história e seus desdobramentos, bem como pela descrição do personagem-escritor, Lourdinha parece homenagear o poeta José Alcides Pinto, que foi atropelado quando retornava dos Correios onde foi postar seus novos livros aos amigos que moravam fora da cidade. Não há, porém, nenhum elemento intratextual que marque essa certeza.

A última parte, “Dois pra lá dois pra cá”, a expressão que é verso de bolero já denota um compasso marcado pelo número quatro. De fato, são quatro contos que, dois a dois, contam e recontam a mesma história por meio de pontos de vista diferentes. – A verdade tem suas versões.

No primeiro par, temos o relato de dois irmãos que se tornam inimigos. Em “Costurando a trama”, um deles, o que foi traído, assume a narração para justificar por que fez a ‘mandinga’ para o outro ficar impotente (porém com a tentação do desejo): teve a sua mulher seduzida por ele. O relato se inicia como uma resposta negativa a um pedido da mãe de que retirasse a bruxaria feita. O discurso é pontilhado por clichês reinventados e bem contextualizados (“Tenho comido o pão que o João amassou; agora é tarde”, “o cão já mordeu a língua”; “quem mandou pegar no pote se a rodilha era alheia”) e intertextualiza a grande contenda bíblica entre Caim e Abel, o que fica patente a partir do nome dos dois personagens, embora o narrador chame atenção para que seja diferente, como se quisesse fugir da sina de irmãos predestinados a serem inimigos: “Meu nome é Ariel, mas qualquer semelhança com Abel é mera sonoridade” (p.125).

Em “Descosturando a trama”, o irmão ‘traidor’ conta como se apaixonou por Elisa, antes de ela engravidar e se casar com Ariel, de o quanto resistiu à tentação de envolver-se com ela; descreve os comentários sobre os maus tratos do irmão com a mulher e, finalmente, assume o delito: “Diz o ditado que quem puder fuja da paixão; nós não conseguimos. Durante um longo tempo, permanecemos no olho do furacão. Consumidos pelo fogo, descemos ao inferno e subimos ao céu. O tempo apagou o escândalo, e amadureceu as chamas” (p.131).

Já em “(Des)conto I” e “(Des)conto II” tem-se o mesmo início, mas desdobramentos diferentes para o mesmo crime, como no próprio relato se afigura, à moda Pedro Salgueiro, que no livro Brincar com Armas, utiliza magistralmente essa técnica.

Lourdinha Leite Barbosa, embora professora de Teoria da Literatura, não se trai ao utilizar teorias. Ela sabe modular seus conhecimentos técnicos e não permite que sua inventividade se submeta a eles. Brinca com as palavras, experimenta gêneros, cria imagens inusitadas, dialoga com suas leituras e cria telas com palavras sempre emolduradas por seu senso estético e sua sensibilidade. Pela moldura da Janela afirma, pois, seu talento e inventividade em transfigurar o jogo da vida em jogo de palavras, arte que desenvolve sem esforço, com segurança e domínio estilístico.
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