José Mendonça Teles consagrou-se ao serviço de Goiás. Escritor, animador cultural, pesquisador, historiador, biógrafo, poeta, professor universitário, gestor, cronista emérito, nada do que diz respeito à terra e aos habitantes de Goiás lhe é desconhecido.
Conheci-o há mais de 30 anos, através da escritora e sua conterrânea Alcyone Abrahão, que exaltou-lhe os méritos e o recomendou como consultor nessa matéria que ele domina como ninguém – a cultura goiana, sua terra e sua gente, sempre presentes em tudo o que escreve e que já lhe rendeu nada menos do que 34 títulos em vários gêneros e uma única e obsessiva temática inesgotável que faz dele, hoje, a maior autoridade em Goiás.
Eis que ele acaba de aumentar a sua fortuna literária com a publicação destas deliciosas “Crônicas de Pirenópolis” (Editora Kelps, Goiania, 2008), que acabo de ler com o espírito do flâneur que se compraz em deter-se, aqui e ali, para desfrutar um ou outro detalhe, que pode ser em rápidas e vivas pinceladas o retrato de algum ilustre ou anônimo pirenopolitano, uma rua, uma praça, um beco, um acontecimento, tudo enfim que compõe a mitologia que faz do antigo arraial de Meia Ponte, hoje Pirenópolis, uma das cidades sagradas do povo de Goiás.
Localizada nos Pireneus goianos, de onde é nativa uma das mais curiosas especimens vegetais – o famoso “papiro goiano” que só existe lá –, uma árvore que se desdobra em folhas de um papel finíssimo e acetinado que certa vez ganhei de presente da célebre botânica e paisagista Dra. Amália Hermano Teixeira, doublé de historiadora e uma das grandes anfitriãs cuja casa, na Rua 24, em Goiânia, era um endereço querido por Jorge Amado e Zélia Gattai, onde me hospedei e deliciei-me com a irresistível gastronomia dessa gente gentil e hospitaleira que se compraz em acolher e ser medularmente goiana. Como José Mendonça Teles, por exemplo, que tomou sob o seu cuidado a publicação de meu livro “O Ouro de Goiás”. Claro, se lhe sobrar tempo, pois se trata do homem mais ocupado da sua terra.
Descendente do famoso padre Simeão, como o seu primo e prefaciador Adriano César Curado, faz-nos o autor dessas “Crônicas de Pirenópolis” passear por essas ruas seculares repletas de histórias, berço de Goiás, onde circulou o 34º jornal publicado no Brasil, o “Matutina Meiapontense”, cujo primeiro numero data do dia 5 de março de 1830. O jornal teve 526 edições, a última em 24 de março de 1834, quando suas máquinas foram vendidas ao governo do estado que dava inicio a produção do seu “Diário Oficial”. É escusado dizer que José Mendonça Teles fez o heróico resgate dessa publicação através de uma edição facsimilar que constitui hoje, também, uma raridade bibliográfica.
O jornal, criado sob a inspiração do movimento iluminista que resultou da Independência do Brasil, em 1822, é uma fonte inesgotável de surpresas. Pode-se dizer que inaugura, avant la lettre, uma concepção de história que surgiria muitas gerações depois na Europa, conhecida pelos historiadores modernos, como os “Anais de Paris”. Sim, porque como as demais publicações do gênero, o “Matutina Meiapontense” é o relicário da vida cotidiana, mas com um detalhe –, além de verdadeiramente democratico, como órgão de comunicação, tem um estilo único que não guardo só para mim e transcrevo a seguir algumas amostras que provam a legitimidade desse orgulho que todo goiano cultiva quando o assunto é este jornal sui generis cuja coleção que teria ficado inacessível aos pesquisadores se José Mendonça Teles não a tivesse resgatado numa aventura que só não conto aqui porque levaria muito tempo.
Dentre os fatos curiosíssimos, aqueles resgatados da correspondência dos leitores, publicada integralmente por seu redator, o padre Luiz Gonzaga de Camargo Fleury, um perfeito liberal, pois publicava até as criticas que os seus leitores faziam não apenas ao governo mas também à igreja e aos seus dignatários.
Provavelmente, terá publicado o primeiro brado feminista, registrado em terras do Centro Oeste que transcrevo, certo de que os leitores se deliciarão com a leitura da carta de uma mulher do norte goiano, que explicava porque nunca se casara, ou seja, para “não se sujeitar a praticar os mais humilhantes e abjetos serviços, que aqui exigem os maridos de suas mulheres, a classe dos cativos não sofre mais, e não é isto uma barbaridade?”
E, prosseguindo, acrescenta: “Santa Constituição! É verdade que nossa condição ainda é a mesma, mas nossas filhas gozarão bens, que nós só gozamos na imaginação, e reunidas faremos os mais extremosos esforços para que sejam observadas, guardadas, respeitadas e mantidas, e isto a preço de tudo quanto licitamente pudermos empregar. Viva a Constituição que vem libertar as miseráveis goianas!”
No número 232, registrando a ida, para a Europa, do General Cunha Matos, comandante das Armas em Goiás e politico influente, há este registro sardônico contra uma autoridade que mostra sem rebuços que os antigos goianos respeitavam o direito à livre expressão:
“O Sr. Deputado Cunha Matos foi-se para a Europa, e por isso vai tomar assento na Câmara o nosso patrício, Sr. Pe. Manoel Rodrigues Jardim, primeiro suplente pela Província de Goiás. Que há de ser de nós, se nos falta o Sr. Cunha Matos, já tão conhecido por seus trabalhos parlamentares! Quem será capaz de falar tantas vezes, e sempre como esse ilustre deputado! É falta irreparável. Apesar disto, estimaríamos que todos os Cunha Matos nos deixassem!”… Perceberam o letal veneno do cidadão?
Sobre o desabafo de uma devota, publicado no número 98 do mesmo jornal, José Mendonça Teles faz uma saborosa crônica sobre essa leitora que se identifica sob o pseudônimo de “Roceira Zelosa”. Zelosa da boa saúde pública e, portanto, contrária ao costume universal de enterrarem-se os mortos dentro das igrejas. A referida carta circulou na edição do dia 13 de novembro de 1830 e é das mais pitorescas. Vale lembrar que a tal roceira estava na Catedral:
“(…) para enviar as minhas orações ao Todo Poderoso, e Ele as distribuir pelas almas, quando de improviso me vi atacada do mais execrando fedor que fedia-se por toda a igreja, de maneira que não só eu como as demais senhoras assaz fatigadas e possuídas de uma intima dor de cabeça maldizíamos deste modo. Será possível que os homens estejam tão faltos do temor de Deus que se animem a encher a sua Santa Casa de cadáveres os mais odiondos (sic)? Será crível que estejam alucinados, ou faltos de olfato para não sentirem o quão danoso é semelhante abuso para o bem público?”
E, concluindo:
“A Catedral e as mais Capelas estão em tais circunstancias que talvez poucas pessoas nelas vão: porquanto a terra bastantemente ensopada e pela sua grande canseira já não admite que se possa sepultar mais ninguém, por isso que o seu hálito talvez tenha contaminado a todos os povos. Eu, como mulher ignorante e falta dos mais ilustrados conhecimentos, não me posso exprimir a bem do meu sexo: mas, a bondade do leitor disfarçará, conhecendo as minhas justas intenções”…
Eu poderia encher páginas e páginas com a verve do autor. Faço mais: recomendo, como uma obra inestimável, a leitura dessas “Crônicas de Pirenópolis” com que José Mendonça Teles enriquece o gênero e concede uma segunda vida às personagens que habitam estas páginas.
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