(Astrid Cabral)
De ano em ano, de dois em dois anos, me encontro com Astrid Cabral. Não sei a regularidade desses encontros. Não, não há regularidade nenhuma. Se houvesse, seríamos amantes seculares, aqueles de contos fantásticos.
A penúltima vez que estive com Astrid aconteceu em Fortaleza. Terá sido em 2010? Fomos, eu e Soares Feitosa, ao hotel onde ela se hospedara. Brincou, ao telefone: Ela é jovem e bonita? Respondi, como bom amigo: Se fosse velha e feia, eu não o levaria até ela. Na verdade, eles se conheciam, sim, não de apertar as mãos, abraçarem-se, mas de se lerem. Porque todos os bons poetas leem uns aos outros. Fomos ao restaurante do hotel e o almoço durou cerca de três horas. Enquanto falavam de poesia, eu me mantinha calado, a comer o pão que nem Deus amassaria.
A primeira vez que vi Astrid, “os céus se misturaram com a terra”. Não, não foi assim, foi em Brasília. Casada com o imenso poeta Afonso Félix de Sousa, comparecia, ao lado dele, a todas as festas literárias: feiras, lançamentos, debates, seminários, palestras. Não faltava a uma só reunião da Associação Nacional de Escritores, antes mesmo da inauguração da pomposa sede, nos bancos duros do Bar Macambira e outros. Viúva (Afonso faleceu em 7 de setembro de 2002), a poetisa, de origem amazônica, passou a residir no Rio de Janeiro. Antes, vivera em algumas cidades do mundo, como Oficial de Chancelaria do Itamaraty, sem nunca perder de vista a poesia, em particular, e a literatura como um todo.
Nutrimos grande amizade, apesar de não nos vermos constantemente. Dizem que o coração não sente o que os olhos não veem. Mentira! Pois então os olhos cegos não amam? Talvez até amem mais do que os olhos muito claros, muito atentos, muito sadios. Ou não se pode medir a intensidade do amor?
No dia 8 de novembro de 2011, no palco do teatro Raimundo Magalhães Júnior, da Academia Brasileira de Letras (por favor, não espalhem por aí que aspiro um lugar na velha casa fundada por Machado de Assis), recebi mais um abraço de Astrid. Não o último (espero que outros aconteçam), porém o mais caloroso. Porque veio envolto num pequeno objeto, quase todo branco, composto de versos: Palavra na Berlinda. E ela me disse: Para você ler no avião e não pensar na morte. Dali a duas horas eu embarcaria de volta a Fortaleza. Mas o que fiz? Sentei-me num banco do Galeão, espiei as pernas que passavam apressadas e enfiei os olhos na poesia de minha amiga: “As palavras se contaminam / de cada um de nós. / Bebem nosso único sangue”. E fui me contaminando de beleza, esquecido das pernas que pensavam em viajar: “A poesia me pede a mão / sussurrando ao pé do ouvido: / pega caneta e folha. Tira / a roupa que te atrapalha. / Joga fora a máscara diária”. Eu nem via o tempo passar, colhido (fisgado) pelo perfume das flores de Astrid: “O poema, esse fruto / que não dá em árvore, / carece de mão e mente / para que possa nascer”. A poesia de minha amiga é simples como os frutos que não nascem em árvores. A linguagem não se mostra afetada. Nada de vocábulos científicos ou de uso restrito das forças armadas, das greis secretas, dos santos sepulcros. É apenas a linguagem dos grandes poetas.
Quando cuidei, uma voz feminina e sensual, quase em desespero, clamava: “Atenção para a última chamada. O voo para Fortaleza se dará em um minuto”. Depositei a palavra na berlinda, meti no bolso o pequeno impresso e corri ao encalço da fuga. Pisei num papel dourado, escorreguei e, por pouco, não me espatifei no chão do aeroporto. Apalpei o livro de Astrid. Sim, estava no meu bolso. E rumei de volta aos verdes mares bravios: “Sem a palavra / trôpegos pastamos / no chão do nada” (...) “Só a palavra / clareia a estrada / por onde vamos”. Olhei para as nuvens e o céu e pensei (como sempre penso, quando me acho a alguns metros de altura) em morrer feliz. E me disse, contrito: Astrid, obrigado; “o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas”.
Fortaleza, 26 de novembro de 2011.
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