Translate

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

João Carlos Taveira e o alçar das asas (Nilto Maciel)



(Poeta João Carlos Taveira, a dizer poemas)

Ao chegar a Brasília em 1977, eu conhecia de nome alguns escritores de lá. Os primeiros com quem me encontrei foram Nicolas Behr (ainda adolescente, cabelos longos, livrinhos mimeografados num saco ou mochila), Danilo Gomes (que me entrevistou para o Suplemento Literário Minas Gerais) e Salomão Sousa. Num segundo momento, como frequentador das reuniões da ANE (Associação Nacional de Escritores), como convidado (ainda não como associado), conheci Taveira e outros escritores mais antigos de Brasília, como Almeida Fischer, Joanyr de Oliveira e Anderson Braga Horta. Esses encontros se davam no bar Macambira, na Asa Sul, após as reuniões oficiais. Ao redor de mesas, bebíamos muito e falávamos de nós mesmos e de livros, além de trivialidades.

Taveira é de chamar a atenção, não apenas pelo aspecto físico (alto e magro), mas, sobretudo, pelo tom da voz. Sempre a bradar, como se fizesse discurso ou estivesse irritado, lembra o jeito gaúcho ou cearense de ser. Por outro lado, não esconde o sotaque caipira (uai, sôr, demais da conta, não sou bobo nem nada, etc).

Não me lembro da vez primeira que o vi. Ele, porém, se lembra de tudo, como se o passado mais remoto fosse ontem. Memória privilegiada é o que tem de melhor. Graças a ela, nem precisa de papel, lápis, computador para escrever. Assim elaborou até sonetos decassílabos. Seus poemas nascem e tomam forma na memória, para depois ganharem o espaço definitivo no papel. Além disso, sabe de cor poemas longos dele e de outros, que recita, declama ou fala, com desenvoltura de locutor de rádio. Não hesita, não gagueja, olhos fitos na plateia ou no interlocutor.

Segundo ele, nós nos vimos pela primeira vez na época da publicação de minha novela A guerra da donzela, o que se deu em 1982. Devo ter promovido uma noite de autógrafos. Não recordo desse tempo. Ainda de acordo com os registros de sua memória, três ou quatro anos depois, fomos apresentados, num dos encontros promovidos por Almeida Fischer (os da ANE). “Você estava com um livro novo na praça, talvez Punhalzinho cravado de ódio”. Deve ser verdade.

Aos poucos, fomos nos tornando amigos ou mais próximos. Não aquela amizade pegajosa, alimentada em cochichos, confissões e outras intimidades. Nem aqueloutra, que leva homens e mulheres a alcovas largas, nas quais se deleitam quatro ou mais seres humanos no conhecido suingue ou sexo grupal.

A partir de 1993 (ou do número 5 da revista Literatura), nós nos aproximamos mais ainda. Conhecedor de seu dinamismo e de sua competência como revisor, editor e diagramador, convidei-o a editar comigo e Emanuel Medeiros a revista. Foram muitos anos de convívio quase diário, sobretudo nos dias que antecediam a impressão gráfica. Sempre a sugerir mudanças, deu início à publicação de entrevistas com escritores, que realizava com muita perícia. Preocupava-se com o silêncio dos mais idosos: “Nilto, este homem está muito velho e precisamos entrevistá-lo, antes que parta”. E assim entrevistou Alan Viggiano, Altimar Pimentel, Francisco Carvalho, José Godoy Garcia, José Hélder de Sousa e outros.

João Carlos Taveira não é apenas bom poeta, revisor, entrevistador e tribuno. Sua vida é dedicada também à música, ao cinema, ao teatro e à pintura. A literatura certamente está na raiz de todas elas, pois começou a ler muito pequeno e isso teve grande importância na sua vida. A música, a pintura, o cinema e o teatro estão, de certa forma, muito ligados à leitura que faz do mundo.

Além do amor às artes, o poeta tem se dedicado de corpo e alma (talvez mais de corpo que de alma) às mulheres. Por que tantas mulheres? Por que é bom ter muitas mulheres ou por que é ruim viver muito tempo com uma mulher? Ele não esconde este seu pendor para as mudanças ou o desprezo pelo conservadorismo das relações domésticas: teve oito casamentos. E imagino outros acasalamentos menos duradouros, de meses, semanas, dias ou horas. O porquê de tantas mulheres talvez esteja no gostar muito do sexo oposto, e sentir-se atraído pelo jeito, pelo cheiro, pelo corpo e pelas ideias que só as mulheres têm. Como a convivência não é fácil e Taveira é do tipo de homem impaciente, a troca de uma mulher por outra se tornou inevitável.

Tenho conversado com Taveira, por correio eletrônico. Quando viajo a Brasília, a primeira pessoa com quem me encontro é com ele. Tomamos café ou cerveja, fumamos, e ele conta histórias deliciosas de viagens, leituras, óperas, concertos, exposições, lançamentos, filhas e mulheres. Eu me contenho e me faço apenas ouvinte, porque não sou de contar histórias reais. Quando muito, invento. Sobretudo quando não sei o que dizer.

Há poucos dias fui a Brasília, a visitar minhas filhas (que estudam e trabalham e não dispõem de tempo para viagens, como eu, pastor do ócio). Não contente com vê-las e tê-las ao meu pé, telefonei para Taveira. Venha tomar um café, meu poeta. E ele apareceu cabeludo (à maneira de Vinicius de Morais), fagueiro e extrovertido. Chegou, abraçou-nos com o carinho de sempre, tomamos o primeiro café e nos largamos a um antigo jardim. Cercaram-nos uns cachorros pequenos, que latiram enquanto Taveira não os fez calarem-se. Agora é a vez da poesia, meus irmãos. E se pôs a recitar velho poema do cão abandonado. Os bichos de aquietaram. Risonho e carinhoso, o poeta mudou o tom da voz e declamou um de seus poemas, que assim se conclui: “Voar, ganhar o ar, / em redes, sedes, brisas, / depois, buscar, no mar, / as claras águas lisas. // Voar, alçar as asas, / falenas sobre as casas,/ as conchas turvas, tortas... // Voar, deixar as fráguas, / os rios, frias mágoas, / que em mim são águas mortas”. Pediu mais café. Entre o horizonte e a eternidade, o círculo doirado da Lua nos mandava beijos.

Fortaleza, agosto de 2011.
/////