A Memória Inconsolável
De tempos em tempos, alguns filmes causam impacto, introduzindo inovações formais, temas inexplorados ou perspectivas inusitadas no trato de assuntos já repisados por inúmeros artistas. Enfim, introduzem e praticam novas maneiras de fazer (forma) e de ver (significado) o cinema e a vida.
Desde Méliès, nos primórdios do cinema ou mesmo no ato de seu lançamento pelos Irmãos Lumière, passando por diversos outros cineastas, a exemplo (apenas alguns poucos e notórios) de Griffith, Eisenstein, a vanguarda francesa e alemã da década de 1920 e Welles, o cinema vem sendo submetido a periódicas ampliações de suas possibilidades.
É o caso de Hiroshima, Meu Amor (Hiroshima Mon Amour, França, 1959), de Alain Resnais (1922-), baseado em texto do nouveau roman francês de Marguerite Duras, rico de nuanças e aspectos que abrangem desde seu fio central temático, o bombardeio atômico de Hiroshima, a presença do passado no presente ou a unidade do tempo até a estruturação fílmica propriamente dita.
É filme (de e) sobre o amor, tratado, porém, de maneira visceral e contemporânea. O romantismo e o pieguismo que vicejaram em épocas anteriores são substituídos pela verdade e significado da simpatia que aproxima, do sentimento que une e da convivência que solidifica os liames entre dois seres humanos. Como as notas musicais submetidas ao toque e pressão dos dedos do pianista, os graus e variabilidades da atração, relacionamento e necessidades mútuas dos parceiros subordinam-se à aguda sensibilidade do cineasta, que lhes infunde consistente conteúdo humano.
Todos os tatos, contatos, expressões, diálogos, atitudes e posturas pautam-se pelas sutis tonalidades e variações de acordes musicais na leveza, flexibilidade e imponderabilidade do som, que, à semelhança do pensamento, do sentimento e das emoções, não se concretiza materialmente, conquanto se manifeste fisicamente.
O tratamento poético e musical e as mais altas formas de formulação artística casam-se com sua materialização plástica e visual, formando indissolúvel unidade estético-cinematográfica.
Se a exteriorização artística, sonora, verbal e imagética acompanha e pauta-se pela maior ou menor intensidade, sofisticação e imprevisibilidade, o estado de espírito e o teor dos momentos vividos e compartilhados pelos protagonistas variam e alteram-se de conformidade com seus momentâneos e impressivos significados num desdobramento atiladamente procedido desde as cenas iniciais de felicidade, íntima satisfação e alegria até o tormentoso instante da separação, que diacronicamente refletem os instantes vividos e as transformações operadas nos estados de espírito e nas expressões fisionômicas, estendendo e atingindo todo o aparato cinematográfico que os configura, conduz e serve de envoltório e sistematização.
Décors, paisagens, luminosidade, ângulos, enquadramentos e a demais mobilidade da câmera modelam-se pela imponderável (ou inexorável) transfiguração do cerne temático.
Os dois tempos amorosos nítidos em que se reparte o filme refletem-se com igual intensividade em momentos distintos e opostos em seu clima humano e delineamento ficcional.
Nesse percurso de densa e intensa vivência humana sentimental procede-se orgânica junção do passado com o presente não apenas como simples e usual retrospecto da memória, mas, como incorporação no agora dos sentimentos e perturbações emocionais e psíquicas pretéritas, presentificando-o num processamento poético e fílmico balizado pela essencialização da mais profunda e dolorida substância do humano, de seu modo de ser, existir, agir e reagir aos impulsos, solicitações e imposições íntimas e em seu posicionamento frente à realidade objetiva, seja na fruição das oportunidades que oferece, seja no enfrentamento dos obstáculos e desditas que desencadeia, num fusionamento temporal refletido na repetição das mesmas alegrias e dores.
Esse processo dinâmico, iterativo e interativo perfaz e compõe a própria estruturação fílmica.
A hábil utilização dos primeiros planos iniciais é ponteada pelas referências simultâneas ao bombardeio atômico de Hiroshima e sua ainda ocorrente consequência, desglamourizadas em apropriadas imagens e textos que objetivamente retêm e expressam o horror do maior atentado e carnificina da História, no qual, em apenas 9 (nove) segundos morreram 200.000 (duzentos mil) pessoas e outras 80.000 (oitenta mil) ficaram feridas. Não há outro exemplo de maior desumanidade e violência, que gerou, a partir daí, no sentir da protagonista, “o começo de um medo desconhecido”, resultando uma “memória inconsolável”, uma “memória de sombras e pedras” nunca mais apagada da História das atrocidades humanas.
(Do livro O Filme Dramático Europeu, editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em 2010-www.institutotriangulino.wordpress.com)
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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, foi candidato ao Senado Federal e editor da revista internacional de poesia Dimensão, sendo autor de livros de literatura, cinema e história regional.
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