Esta nova edição de “Os Guerreiros de Monte-mor” (2011, Armazém da Cultura), de Nilto Maciel, é por demais oportuna, pois a primeira (1988, Editora Contexto, SP) está esgotada, certamente não será encontrada com facilidade nos sebos. Agora, com esta belíssima publicação, o leitor descobrirá ou redescobrirá este ficcionista genial que, a exemplo de José de Alencar (Iracema), canta sua aldeia Baturité (CE) em dimensões históricas, tornando-a notória e eterna em sua literatura.
E, por falar em aldeia, nos remetemos a ideia de local que em “Os Guerreiros de Monte-mor” transcende, alcançando a universalidade, num plano de consciência social interiorizada pelas personagens que têm por missão repassar os ideais de revolução para que ela aconteça em termos reais ou imaginados.
Segundo Nelly Novaes Coelho, “Os Guerreiros de Monte-Mor” nos revela em sua estrutura a condição de novela “que faz rir e dói”. Esta ideologia se reitera em F. S. Nascimento, que nos diz, de forma acertada: “Em sua mais recente novela, Os guerreiros de Monte-mor, Nilto Maciel renega os modelos da ficção histórica tradicional, estabelecendo a modernidade estrutural através de montagem de cenas atemporais”. Flávio Paiva reafirma lucidamente a ideologia que classifica esta obra de Nilto Maciel, afirmando: “A novela, aparentemente sem eira nem beira de Nilto Maciel, presencia o que não existe e acaba pintando cenários de um tempo em perspectiva curva, como em um cinema 180 graus, fazendo circular inquietações esquecidas. A luta febril dos guerreiros ingênuos por uma liberdade qualquer, reescreve o que não foi sequer escrito e dá contornos abstratos ao que foi desfigurado por toda sorte de ignorância”.
Classificamos uma obra por qual motivo? Para informar ao leitor? Para expressar o conhecimento do crítico? Nem uma coisa nem outra. Os gêneros literários existem e pertencem à realidade dos escritores que se apossam deles consciente ou inconscientemente, e são percebidos pelos críticos em suas leituras e estes os mencionam em suas análises, como bem fizeram os autores acima citados. “Os Guerreiros de Monte-mor” é de fato uma novela, não só porque os críticos disseram, mas porque apresenta estrutura, característica comum a este gênero: começo, meio, fim e suspense, como bem nos assegura Massaud Moisés.
O narrador de “Os Guerreiros de Monte-mor” nos revela seu discurso em terceira pessoa, num espaço aberto e fechado. O espaço fechado concentra as ações mais significativas do enredo. O discurso narrativo se faz de forma direta e indireta, predominando o discurso indireto. Quando a personagem fala, fazendo uso do discurso direto, afirma e nega algo ou indaga. Serve-nos de exemplos esses termos: “– Sou dom João” (p. 58); “– Nós somos republicanos” (p. 56); “– Mas, vovô, é seu filho” (p. 86)”; “– Não sei mesmo como não fui também enforcado” (p. 87); “– Não preciso disso” (p. 111); “– Estão me ouvindo?” (p. 98)”; “– Estado, o que é estado?” (p. 99); “– Começou a guerra?” (p. 104); “– Não é mesmo, capitão Pedro?” (p. 63); “– Por acaso já fui negro cativo?” (p. 25).
O discurso narrativo de “Os Guerreiros de Monte-mor” nos revela o sobrenatural, o mistério subvertendo o real, caracterizando a presença do fantástico, gênero que Nilto Maciel reitera nesta sua novela, tornando-se um dos representantes dessa literatura no Ceará, ao lado de José Alcides Pinto, Gilmar de Carvalho, Batista de Lima, Dimas Carvalho, Ana Miranda, dentre outros.
A inferência se insere em certos momentos no discurso desta ficção de Nilto Maciel, explicitando-se no próprio texto ou implicitamente, exigindo do leitor o exercício da dedução: “Apaixonou-se pela cabocla Micaela. Casado, aceitou a oferta do padrinho dela: vigiar a sesmaria com o dedo no pinguelo e plantar um roçadinho ao redor do tijupá que levantasse. Coisa melhor não podia arranjar. Ora, Domingos Carneiro possuía terras e escravos e – diziam – era o pai de Micaela. Escolheu bem o lugar onde ia erguer as paredes da taipa, e arregaçou as mangas (...) certo da atitude que tomava, sem conversa fiada. Além do mais, um dia podia tomar todas aquelas terras e devolvê-las ao seu povo. Bastava uma facada. Ou nem isso: uma picada de cobra no calcanhar do sesmeiro, e herdava tudo, como quase genro” (p. 21). Nesse trecho o narrador nos poupa o uso da dedução (...) “só podia ser obra dos conselhos de Antônio” (p. 13). Inferindo sobre esse termo, nos reportamos a Antonio Conselheiro pela lógica da suposição. “Nunca se entusiasmou por donzela alva, de olhos celestes e cabelos de milho” (p. 18). Nesse caso o leitor compreende ao inferir que alva significa branca, olhos celestes é o mesmo que olhos azuis e cabelos de milho assume a condição de cabelos loiros.
Nilto Maciel, tal qual José Alcides Pinto, Machado de Assis, Oscar Wilde, Clarice Lispector, borda no tecido de “Os Guerreiros de Monte-mor” uma série de aforismos, abordando uma diversidade de temáticas em linguagem quase que absolutamente regional: “A vida só é grande nas palavras” (p. 79); “Em tempo de guerra, até aleijado tem de correr” (p. 27); “Quem não é de briga, não abre encrenca” (p. 27); (...) “quem sujiga onça é homem para todos os efeitos” (p. 70); (...) “a fama das pessoas não se apaga nunca, fica pregada na testa, e a terra, quando faz seu trabalho de comer as carnes, roer os ossos, não tem força para destruir os feitos do finado” (p. 71); “Às vezes é sem pensar que o pensamento decide melhor” (p. 106).
O eolismo, ou seja, a presença do vento, em “Os Guerreiros de Monte-mor, se manifesta substantivado e personificado ao mesmo tempo; em outros momentos, a personificação se omite, constando apenas a presença eólica substantivada: (...) “O vento frio açoitava seus corpos quase nus”(...) (p. 59)”; (...) “Nem o vento soprava e uma noite inesperada cantou ao longe” (p. 132); (...) “a língua lambia o vento”(...) (p. 147).
Além da inferência dos aforismos e do eolismo, nota-se também uma marcante presença de vocativos, termo que vem entre vírgula, indicando um chamado. Esses vocativos se mostram em discurso direto de forma imperativa, se o vocativo se inverter não muda a postura imperativa: “– Cave, meu filho, cave esse chão” (p. 18); “– Vem cá, minha filha” (p. 52); “– Vamos, dê conta da espada, imperatriz Micaela” (p. 64); “– Não faça isso, Chicó” (p. 150).
O conto “Chão pintado de sangue”, do livro “A leste da Morte” (2006), nos revela o espírito moleque do cearense. Esta característica deste povo alencarino também se registra em “Os Guerreiros de Monte-mor”: “O regimento Cardoso entrou na vila a passo lento e foi recebido a vaias pelos moleques” (p. 123). Tal qual o sol que também foi vaiado na Praça do Ferreira.
O despertar e o sonho, a idealização de um mundo paralelo (nação dos jenipapos, país dos jenipapos ou qualquer outra ideia similar desta natureza) norteiam todo o enredo desta obra de Nilto Maciel, tornando-a necessária e inserindo seu autor no rol das melhores expressões da nossa literatura.
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