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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Equívocos, co-autoria e a morte do livro (Valdivino Braz)




Volta e meia, a cada ano que se inicia, o jornalismo cultural nos solicita e publica um “programa de leitura”. Meio que avesso à contingência de preestabelecer e repassar relação do que pretendemos ler no decurso de um novo ano, me pergunto em que, a fundo, isso possa interessar e ser útil a algum leitor, leigo que seja ou letrado em matéria literária. Alguma concreta curiosidade ou real interesse quanto a isso? Quem, realmente, quer saber o que estamos lendo, ou se interessa pelo que vamos ler? E para quê quer saber? Sabê-lo servirá, porventura, a algum parâmetro ou nobre propósito? Constituirá, aqui e agora ou algures, alguma espécie de farol, sinal indicativo, vetor valorativo, substancial roteiro de leitura?
Faço as perguntas, mas não dou respostas. Deem-nas, a nós, que recorremos a vós, hipotéticos leitores, doutores em letras ou meros curiosos, senão e somente amantes da arte literária (criada com ideias e palavras), que deixa de ser arte quando equivocada e desastrosa, por conta de limitações autorais ou de parco talento (sinto que os olhares se voltam para mim, autor de obras pontilhadas de imperfeições). De mãos dadas, e amiúde em lançamentos de livros, a vaidade e a chatice de professar-se também escritor (“Eu também escrevo”), o diletantismo sem futuro, pífia e patética obra dos equivocados (neófitos e afoitos), iludidos na senda pedregosa da literatura, doce (e amarga) ilusão.

Erva daninha, a praga se prolifera. Deles, escribas de fornada, há com insistentes pedidos de prefácio para obras chinfrins, ingênuas tanto quanto imaturas, quando não e de todo alienadas. E se, por isso mesmo, você até se condoer deles, se sentirá mal por algo que não vale a pena. Literatura não é por aí. Já não bastassem os importunos “elementos” do CCC (Comando de Caça aos Coqueteis), posando de papagaios de pirata diante da mídia, e pedindo livros que jamais compram e que, a mais das vezes, nem serão lidos, mas, sim, vendidos aos sebos.

Co-autoria do leitor

A propósito de equívocos e desastres literários, há pouco recebi e-mail de um contumaz leitor (vamos chamá-lo de Teotônio), autor de livro e residente em Goiânia. Atento, perceptivo, por isso mesmo instigante nos seus questionamentos de ordem literária. Veemente em suas posições, ressalta sua aversão aos “modismos e cânones impostos por uma visão distorcida da realidade que nos cerca”. Acentua, por exemplo (tome polêmica), a questão da co-autoria do leitor. Taxativo, afirma que “escrever para leitor co-autor é tão vazio quanto a estúpida reforma ortográfica que só agradou a meia dúzia daqueles velhotes da Academia”. Idiotia sem par, de acordo com Teotônio, é alguém dizer que o autor do texto ou o diretor do filme não deixaram espaço para a co-autoria do leitor ou expectador.

Teotônio rebate as “críticas idiotas e antipáticas” de um certo crítico que condena “a tutela exagerada” de Saramago (parece-me que no livro “Claraboia”; mas não sei, ainda não li), confinando a trama à necessidade de total clareza. Isso, de acordo com o crítico, afasta as dúvidas que fazem a boa literatura, sobrevindo como consequência imediata “não se dar ao leitor a chance de co-autoria na história, uma das regras ficcionais importantes para uma fruição mais rica da leitura e, de resto, um prazer rápido; livro para ser lido no metrô”. Para Teotônio, isso não passa de outra heresia idiota. E mais ele diz: “Essa peste contaminou a mente de quem escreve hoje em dia, escritor ou crítico. Por isso tem tanto escritor tutelado por essa onda, escrevendo coisas ruins ou péssimas e achando que estão abafando. Até na poesia: dá raiva ler aquelas imagens desconexas e sem rumo na maioria dos poetas mais jovens de hoje.”

Leitores assassinos

Por outro lado, o escritor e jornalista José Castello publicou, no blog “A literatura na poltrona”, o texto “Mensagem a leitores assassinos”, questionando em que medida os leitores destroem a reputação de um livro, via de leituras apressadas, indiferentes, superficiais. Castello reporta o capítulo LXXI (“O senão do livro”) das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, em que este fala por meio de seu próprio personagem: “O maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...”

Uma mensagem, segundo Castello, que atinge em cheio o peito engravatado — ou decotado — do leitor contemporâneo, para quem, em um mundo de imagens, as palavras devem ser como flashes, e mais nada, porque o leitor não dispõe de tempo nem de paciência. “Memórias Póstumas” foi publicado em 1880, há 131 anos, e Castello, a par com Brás Cubas, remonta a questão, a saber se o problema do assassinato de livros não está nos leitores, tantas vezes apressados e pragmáticos. Ah, vamos, acrescente-se aí a preguiça mental, própria de gente inculta. E tome BBBs.

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