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quarta-feira, 14 de março de 2012

A cidade desabafa (Enéas Athanázio)

Transcrito de Página 3 [Camboriú, Santa Catarina, 18 de fevereiro de 2012]



Escrever o romance de uma cidade através de entrevistas, se não é inédito e, pelo menos, incomum. Procurar pessoas dos mais diversos ofícios, costumes e formação e delas arrancar, sem qualquer forma de censura, o que pensam de bem ou de mal e tudo quanto lembram do passado, recente ou remoto, de uma cidade, eis uma tarefa que me parece das mais complicadas. É preciso vencer a resistência de algumas e superar o receio que outras tenham de se manifestar sem o temor de represálias ou ressentimentos.
Mas foi isso que fez Franklin Jorge, jornalista de experiência e renome, através de 50 entrevistas com as mais diversas personalidades de Natal [RN], num verdadeiro balanço da vida da cidade no correr do século passado. Com toda propriedade, foi assim que ele escreveu o romance de uma cidade, como diz o subtítulo de seu livro “O Spleen de Natal” [Editora da UFRN – Natal -2001]. E, se isso não bastasse, fez uma história com gente, algo vivo e palpitante, revelando a alma e o sentimento urbano, não se limitando aos elogios bairristas mas, ao contrário, destacando o negativo quando merecido.

É curioso notar que as entrevistas não têm títulos e nem tampouco as costumeiras perguntas e respostas. As palavras do entrevistador e do entrevistado se misturam sem que surja qualquer confusão, uma vez que o leitor percebe com perfeição quando fala este ou aquele. Daí resultam textos que se assemelham a crônicas, cada uma delas compondo um capítulo desse curioso romance de uma cidade conhecida como a terra do sol e por sua paisagem natura e urbana.

Para bem captar a atmosfera da cidade, seu espírito e seu humor, o autor entrevistou todo tipo de gente. Poetas, escritores, jornalistas, cantores populares, atores, músicos, artistas plásticos, figuras pitorescas, visitantes, profissionais, funcionários, gente simples do povo, pescadores, favelados, líderes comunitários, agitadores, idosos e jovens. E de cada um foi extraindo com habilidade as informações desejadas e, mais que isso, as opiniões a respeito da vida urbana, sua história, sua cultura, as personalidades destacadas e tudo mais.

É frequente a queixa contra o desinteresse e a ausência de apoio do poder público às coisas da cultura, males que parecem nacionais, uma vez que a quase totalidade dos políticos ainda julga a cultura uma espécie dispensável de perfumaria. Por outro lado, há quem lamente a apatia dos jovens e sua incapacidade de indignação. E quando isso acontece, “as coisas estão pretas”. Também há quem lamente as costumeiras “panelas” que surgem em defesa de interesses mútuos, nem sempre legítimos, como existem em toda parte. Surge mesmo quem não goste do passado porque “o passado transforma as coisas e faz os mortos melhores do que foram em vida. O passado é falsário por natureza...” [pág.75].

Uma presença perpassa o livro do começo ao fim, revelando a força de sua personalidade e a influencia que exerceu. Trata-se de Luis da Camara Cascudo [1898/1986], folclorista e historiador da cidade. Aparece como o jovem “dandi”, filho-de-papai, deitado numa rede e acocado pelas mulheres da casa, assim como em tantas outras fases da vida. O pesquisador, o escritor, o professor, o orador, o mestre. Sua reconhecida bondade, a discrição permanente, o interesse pela cultura popular, a repercussão nacional de sua obra, o amor à cidade da qual nunca quis sair e a imensa roda de amigos que invadiam seu chalé e que ele, com a maior franqueza, mandava baixar em outro terreiro quando se excediam nas visitas. Cascudo foi vitima permanente dos invejosos, sempre tentando diminuí-lo, desprezado pela gente bem porque se dedicava às coisas do povo humilde, frequentando bibocas do porto e da praia. Com quem tive a sorte de passar toda uma tarde, em 1983, três anos antes de seu falecimento.

Alheio e acima dessas miudezas, ele trabalhou, tornando-se o maior e o mais festejado folclorista nacional. E com seu reconhecido bom humor, saboreando o inseparável charuto, dizia que parente é amigo por obrigação, enquanto amigo é parente por vocação.

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